sábado, 31 de outubro de 2009
SÁBADOS
um carro que passa lá fora,
um apito de sábado no jornal sobre a mesa,
há uma névoa mortal que me envolve a cabeça.
Existe uma manhã nos flocos cereais
um torpor no corpo bebido
mais uma aresta da minha avenida
que tive ontem percorrida.
e antes de ontem,
a pé ou de fugida
todos os dias
e hoje imóvel
me detenho inteiro
com tal torpor verdadeiro.
DIG LAZARUS! DIG
um precipício de paredes
doiradas
cavam bem fundo
nos poços da memória
em busca de um fundamento
de uma razão
ou o simples pulsar do coração
as palavras são rochedos
na aresta da maré nua.
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
FINAL DE UMA ODE
Ana Cristina César
in Poesia Brasileira do Sec. XX, pag. 264-265, Ed. Antígona, 2002
MARGEM (aos observadores atentos de rios)
onde ninguém passa,
sentado e quieto como as pedras
deste ribeiro da vida que observo.
Sem que ninguém se aperceba
que o rio não traz água,
que a secura também é um leito
onde sozinho me vai desaguar.
INFLUENZA
Continuo a ler a biografia de Gabo.
PIANO
e como isso te provocava desconforto nos dedos.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
TÚNEL DE VÔO
na alma.
Atravessou-me o portal
dos olhos.
(em forma de abóbada
de berço)
Os cães, ao sentir tal ser esvoaçante,
anicharam o seu corpo quente
nas omaplatas.
Através desse portal avisto
o universo inteiro:
montanhas de lixo
rios com portagem
poços de chuva
gente veloz
caixas de papel
corpos de sombra
A felicidade deve ter-me visitado,
em forma de pássaro.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
HEART AND SOUL (One will burn)
A journey that leads to the sun,
Soulless and bent on destruction,
A struggle between right and wrong.
You take my place in the showdown,
I'll observe with a pitiful eye,
I'll humbly ask for forgiveness,
A request well beyond you and I.
Heart and soul, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
An abyss that laughs at creation,
A circus complete with all fools,
Foundations that lasted the ages,
Then ripped apart at their roots.
Beyond all this good is the terror,
The grip of a mercenary hand,
When savagery turns all good reason,
There's no turning back, no last stand.
Heart and soul, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
Existence well what does it matter?
I exist on the best terms I can.
The past is now part of my future,
The present is well out of hand.
The present is well out of hand.
Heart and soul, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
One will burn, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
in "Closer", Joy Division, lyrics by Ian Curtis
terça-feira, 27 de outubro de 2009
(s/ título)
Serão a floresta lúcida?
Ou uma alma adiada?
Interrogo-me,
Deixarei de existir,
depois de vertida a tinta sobre o papel?
Ou será tudo isto inútil?
A anunciada inutilidade da arte
consumar-se-à ao toque dos dedos
do leitor sobre a página?
O papel, esse, continua imaculado,
suspenso dos precipícios dos homens.
Que geografia absurda para o desencontro.
Não conhecerei os meus leitores, jamais.
E no entanto essa impossibilidade
constrói o ventre do poema.
ARTE CONCRETA
da camisa,
há amigos que me visitam sempre,
quando a luz se extingue.
Uma amiga disse-me um dia,
ter sonhos em forma de Arte.
A única arte que lhe conheci,
na altura, revelou-se nas garrafas
que guardava debaixo da cama:
era uma sede imensa de infinito.
Hoje bebo dessas garrafas vazias,
quando me visita a tristeza.
Mas ela já não me visita.
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
NO TEU OLHAR
No teu olhar existem barcos,
Existem sóis,
Existe a luz,
Existem outros olhos,
que a escrita dos meus livros traduz,
No teu olhar existe o meu,
E outras coisas por explicar,
No teu olhar existe o mar.
OUVE
discursando,
sobrepondo-se aos pássaros do parque.
Havia sistemas complexos,
naquela tarde.
Havia arte nos teus lábios rubros.
Havia flores no jardim
e chá sobre a mesa.
Havia palavras na doçura das tuas mãos.
BRAD
dia vinte e dois de outubro
do ano de dois mil e nove,
poema breve,
escrito com a ponta dos dedos,
o monitor bem à minha frente,
percutindo dedo e tecla,
numa maquinação crepuscular,
o fogo irradiando da cabeça,
ígnea,
os olhos enevoados,
brad mehldau na cabeça,
o som do piano em ecos
de oitavas em cascata,
o parque nas minhas costas,
enche-me o quotidiano
de arvoredos, densos,
florestais.
os barcos remando no lago
enchem-se de peixes fantásticos
e crianças atiram bolas de pão
aos pombos.
ÚLTIMA HORA
Stop
Vasos de guerra,
em forma de pevide,
avançam em direcção à praia.
Avançam e recuam:
bizarro.
Alguns são engolidos pelas vagas.
Stop
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
(s/ título)
sobre a mesa,
só existia um poema.
À vez, cada verso
alimentava uma boca.
Nasci nessa casa,
onde um sol de oiro,
vinha muito cedo,
iluminar a página branca,
na raiz do dia.
PALAVRAS (a uma amiga)
verde
com
laranjas
ave de fogo
no ombro
incêndio
escombro
terra
só
terra
pó
rio terno
água
de inverno
sol
que baste
q b
Olê
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
SUSSURRO
escuto pérolas rolando na tua pele,
Esse sussurro alimenta-me
as noites inteiras de esperança.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
LIVRO
os dedos doridos.
Primeiro em círculos concêntricos,
as outras mãos, na boca da página,
bebem-me as palavras:
constroi-se um sonho na boca dos outros.
Estarei a sair de dentro de mim?
Um universo inteiro, desconhecido
e atento entra-me casa adentro.
Serei um abrigo imaginado,
um templo de luz.
domingo, 18 de outubro de 2009
SERÃO MUSICAL
palavras amarrotadas por uma luz que cega.
Duas ou três vezes por noite acendo o candeeiro,
procuro o papel e vomito as palavras ruminadas.
A luz apaga-se na voz, adormecida.
O teu corpo abre uma cratera de vida,
no meu corpo, eu queria viajar na cidade,
nos túneis das palavras que me disseste,
não te quero esta noite, nunca mais.
Outra vez acendo a cabeça de prata,
uma fome de ascender à montanha do mal,
uma lâmina no cume, reluzente,
abraça o teu tronco de sangue,
a nudez da noite pode completar,
a sinfonia da solidão.
FIM DA ÉPOCA BALNEAR
a onda era mais alta, de uma espuma doce.
Ali na praia tudo parecia embarcar,
até o vento te soprava até mim.
Agora caminho no areal e vejo um reflexo surdo,
estendo-me na duna e espero pássaros,
aves enormes pincelando sombras aleatórias.
Espero a minha própria sombra à beira-mar.
NAVIO DE ESPELHOS
O navio de espelhos não navega, cavalga Seu mar é a floresta que lhe serve de nível Ao crepúsculo espelha sol e lua nos flancos Por isso o tempo gosta de deitar-se com ele Os armadores não amam a sua rota clara (Vista do movimento dir-se-ia que pára) Quando chega à cidade nenhum cais o abriga O seu porão traz nada nada leva à partida Vozes e ar pesado é tudo o que transporta E no mastro espelhado uma espécie de porta Seus dez mil capitães têm o mesmo rosto A mesma cinta escura o mesmo grau e posto Quando um se revolta há dez mil insurrectos (Como os olhos da mosca reflectem os objectos) E quando um deles ála o corpo sobre os mastros e escruta o mar do fundo Toda a nave cavalga (como no espaço os astros) Do princípio do mundo até ao fim do mundo |
Mario Cesariny
Mario Cesariny
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
REGRAR
Digo-vos, regras são precisas,
escrevo sobre tudo,
e sobre o vazio.
Sobre homens e mulheres
e sobre o frio.
Sobre a vida e a noite
e como os dias me escolhem,
o melhor poema.
A regra é escrever,
quando me apetecer,
a toda a hora,
todo o dia, desde a madrugada
até anoitecer.
Sou homem regrado,
de não ter regra nenhuma,
tenho uma semente de liberdade,
um puro sangue, que me cavalga nas veias,
com regras é claro: dois coices no ar,
sou mesmo uma freira.
FOME
A minha está elevada acima dela.
Paira no ar como um balão.
Tenho de subir sessenta e oito degraus
para aceder ao céu, à minha porta.
À noite emergem do esgoto os ratos.
De esgoto em esgoto os ratos
avançam e a lua resplandece.
Três homens, três, de luvas
enlutados, conduzem um pequeno
carro de mão, trazendo pela trela
o pequeno cão.
Abrem um a um os contentores,
libertam o lixo e seus vapores.
Montam um esplanada com chapéu de noite
e remexem em sacos, pilhas, maravilhas,
couves-flor, cadeiras de baloiço,
ferros a vapor e separam restos,
organizam tudo, antes da partida.
E eu, no meu apartamento,
covil suspenso no ar,
a seis metros da rua,
faço disso poesia,
dessa fome a meus pés,
descalça na noite fria.
PALAVRAS
palavras bonitas,
minúsculas e belas.
Agora voam no ar,
de todos os tamanhos,
sopradas por vírgulas,
como rebanhos.
Palavras leves,
como o sonho,
breves como chuva,
redondas como vinho,
da tua uva.
DIA
Talvez tenha bebido
demasiada noite.
A garrafa está meia,
esqueci metade
da minha vida,
nesse meio vazio
do vaso vertido.
O dia nasceu,
com ele renasço,
a boca cansada,
a língua adormecida,
porém.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
SOUVENIR
são sempre as merdas burocráticas
que dão cabo de mim.
as horas que gasto a fazer relatórios
as horas que gasto
a preencher as horas que gasto
a fazer relatórios
as horas que gasto
a preencher as horas que gasto
a preencher as horas que gasto
num ciclo infinito
que na prática me faria
nunca parar de justificar horas
se não fosse
o teorema de Cauchy
no Blog Tolan
GUME
A aresta por onde ando,
exige equilíbrio absoluto,
silêncio absoluto.
Qualquer desvio de rota
compromete a imagem no espelho.
Os estilhaços de espuma
cortam ou recortam a onda.
Dá-me a tua mão,
a tua areia de mel,
o teu corpo todo.
Descansa o teu tempo
no meu oceano de papel.
Abro-te um livro de água.
JLB
acompanhou-me nesta segunda-feira,
de casa para o trabalho, acordado e lúcido,
um cego incha-nos os sentidos,
ficamos com a pele arrepiada.
Ele olha as ruas da cidade
como ductos nostálgicos,
ouve-se um bandoneon,
transporta Buenos Aires nos poros,
eu fico a escutar a melodia,
como se nunca a cascata de som
me tivesse visitado: Astor.
Queria que me visitasses,
assim, nalguns dias,
nas segundas-feiras:
serei cego como tu.
Veremos.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
MAR DA PALHA OU LÁ PERTO
metálicamente brancas,
descrevem um rio.
Voam doidas no estuário,
por entre os galhos
da ponte imponente.
Suspensas dos braços
do senhor cristo-rei,
defecam verticalmente no tejo.
A merda penetra nas águas profundas,
como uma seta na corrente.
Nas margens ergue-se o casario,
alucinado por carros velozes.
Tenho um air-bag na cabeça,
só não sei quando vai rebentar.
Toda a minha vida é um acidente,
sem pronto-socorro.
As aves reentram no meu sonho,
cagam-me de novo na cabeça.
As águas lodosas do rio,
entram nos ministérios.
- Eu vi ministros com pés de barro.
terça-feira, 13 de outubro de 2009
BEETHOVEN
com as nove sinfonias.
Vou ficar a ouvir pela noite dentro.
Pode ser que pela manhã,
me chegue a Alegria (9ª op. 125)
CALOR
O calor desnuda-me o corpo,
a carne envolta em água,
um cambalear, uma vertigem.
O fogo de outubro,
do outono em mim,
ou fora de mim,
o asfalto em chamas.
Os pés colam-se ao chão.
Estou imóvel com o plano do papel
ao nível da vista, e escrevo:
a cidade dos corpos ternos.
domingo, 11 de outubro de 2009
JOGO
a mão tocando levemente
o triângulo da pele,
Entre as pernas,
toco-te o âmago da escrita.
Ponto final.
Uma vírgula surge então,
despenteada no ventre redondo.
Uma língua descontrolada
e ofegante reproduz-se
dentro da boca oval.
A língua desenrola-se
e o ventre emudece.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
CONCURSO
enrolados num cordel,
qual Camões, com tal cuidado,
afastados do plano de água.
Não fora molharem-se as folhas,
duma escrita marginal,
sem margens nem caudal.
Concorri como da Ponte,
para salvar tal manuscrito,
como água para a sede
eu bebi palavras loucas,
de mil e tantas bocas,
de mil e uma penas,
julgando escrever poemas.
O resultado já se sabe,
Na cauda vou ficar,
Pois ao escrever tanta merda,
O juri não vai suportar.
Lá me vem à cabeça o Bocage,
outro fiel companheiro,
destes negócios de trampa,
do buraco de ser último,
se fez enfim o primeiro.
(escrito em Caldas da Rainha numa alucinação de águas termais - Outubro 2009)
domingo, 4 de outubro de 2009
PAPÉIS
assaltam-me os sonhos.
Durmo de dia em razão do medo,
do escuro.
Deitado na cama,
os sapatos colados aos pés,
leitosos.
Uma luz vertical atravessa-me
a face ausente, sonhada.
O mundo desabou ontem,
com a estante dos livros.
A sala vazia inundou-se de folhas,
de um outono avermelhado.
Coloco o meu corpo num canto neutro,
redondo.
Tenho um livro colado ao céu-da-boca,
e pastagens edificadas na terra húmida.
APPLE TREE
Apple tree, apple tree,
What else can you be?
The fruit is juicy,
The soil is free,
The sky above,
Staring at me.
Apple tree, apple tree,
Golden fruit, round and red,
as round as it can be,
Take my soul
to your earthly bed.
in Northern forest, English poems
Paulo Correia 2006
O MELHOR DO HOMEM
in Onde vivi e para que vivi, Henry David Thoreau, Edições Quasi, 2008
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
O POETA
de tanto caminhar,
na estrada de pó,
na poeira do sonho.
Chega com pérolas grossas
de água na fronte.
Procura uma fonte,
uma água, uma sede.
O poeta que chega sempre,
parte invariavelmente de novo.
Em busca de uma geografia
de palavras improváveis.
Impossíveis.
Há dias em que as palavras
me saem das veias,
como pássaros purpúreos.
Estou cansado deste voo circular,
que se liberta da humidade matinal.
O poeta tem as mãos sujas,
da sombra dos dias.
O poeta cresce como erva daninha,
nos quintais.
O seu peito nu,
acolhe um coração fraco,
de corda.
Feito de ruas estreitas,
medievais, num tempo antigo
e lento: arrítmico.