quarta-feira, 30 de setembro de 2009

DECLARAÇÃO

Estou loucamente apaixonado,
pelo teu IRS
Sinto até prurido no reembolso,
das tuas nádegas.
Só irei à repartição,
para me sentar na tua calculadora.
E sentir o volume excessivo
da coima que me ofereces.
Quando te sentares
no meu rendimento,
diminuirá a tua fortuna.
O prazo de te entregar
expirou.
E tu expiras de prazer
no expediente.

O COBRIDOR

À entrada do metro está o cobridor de damas
e cavalheiros
de pé perna cruzada a coçar os testículos
e a fumar para o chão em escarros
pouco límpidos.
O metro pede que chova em cima
do cobridor
que encena a sua rábula cinéfila
e leva aos tomates uma estranha fome
de afecto,
melancólica.
Já viajei de metro
e eu próprio
já supus que nos meus testículos
o mundo vinha adormecer
com as mãos suadas.
Às vezes
trocávamos de papel,
e ninguém sabia quem cobria quem,
cobertos éramos todos
por uma tristeza
austera
que o metro punha no ar
irrespirável.
Hoje, tomates são só de importação ou virtuais.
E os cobridores
uma espécie em vias de extinção
na esquina fluorescente do dia descaído
e na cabeça da noite que já nem dá por nada.

Armando Silva Carvalho, Lisboa,

Quetzal Editores, 1999





































terça-feira, 29 de setembro de 2009

NOTA IMPORTANTE

Nota de fecho de edição.
Paisagens de papel não é poesia.
Qualquer semelhança com a realidade,
é pura literatura.
Esta escrita impura vai ser encerrada.
Deve ser lida de pernas pró ar,
cabelos ao vento, mãos na terra,
sol na moleira,
e muita doideira.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Post Scriptum

O povo votou. Exprimiu a sua vontade clara e inequívoca.
O país amanheceu cor-de-rosa desmaiado e laranja clarinho com as outras cores do espectro solar bem representadas. Alguns raios de sol tornaram-se mais nítidos. Os portugueses parecem ter afirmado que estão fartos do centro e das suas propostas. Assim deslocaram as suas opções de voto para a periferia. À esquerda e à direita engrossaram as fileiras do descontentamento.
O povo voltou a confirmar uma orientação política para os destinos do seu país, mas não com a mesma clareza de antes. Parecem recomendar mais debate e humildade a quem decide. Resta saber se os actores a quem foi conferido o papel difícil de consensos, saberão interpretar os sinais desta pequena mudança. Porque é disso que se trata.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Portimão

Philip Glass rasga-me um Grand Canyon
nas fissuras dos dedos, impressas no frio.
Aconselharam-me um creme gordo
para a vida gretada.
E surge-me o Guadiana,
que engorda a olhos vistos,
ladeando a planície trigueira.
Desagua no maior lago da península,
ali pr'os lados de Marrocos.
Sou um mouro, transfigurado é certo: polido.
Não como o Aleixo,
que tinha mãos ásperas da poesia.
Este livro... construo-o sobre as ruínas
dos pesqueiros sorvidos,
do Arade cansado,
dos seus suores de maré baixa.
A ponte ergue-se sobre o rio,
como a tal torre em Paris:
feita do mesmo aço rendilhado.
A Casa Inglesa invade-me os Natais,
onde o jogo de xadrez me permite
o sacrifício das figuras com peões solitários.
Talhos de sal esquartelados no leito
dessa terra húmida, sulfúrea.
Terra de sóis.
Eu vivi aqui neste canto do barlavento,
ninguém falava a mesma língua.
Entreguei-me à babilónia,
sinto-me em casa em qualquer lado.
Mas o sul é o meu lar, o meu mar,
a minha raiz nua de figueira,
lambendo a terra.

Caldas da Rainha, Setembro de 2009


segunda-feira, 21 de setembro de 2009

boca incontinente

que é isto esta escrita em jacto constante torneira aberta onde se misturam pão oiro e terra de fogo falta cantá-la em terra queimada e almas cicatrizadas e paisagens de cimento concreto administradas com um cuidado maternal esquecido fumo as palavras e espero visões incendiárias numa espera dolorosa de anjos prostituídos uma nova ordem económica já não escrevo poesia as palavras autonomizaram-se soltam-se das folhas de papel caem dos outonos como árvores arrancadas do meu peito folhas com seiva acre plantadas em caixas de cimento caiadas com o leite materno da terra amada nunca me vi a teu lado companheira fiel de longos serões de solidão em jacto constante rio imenso lançado nos desfildeiros no capelo das ondas no teu cabelo sedoso da memória de há vinte anos ou trinta ou de sempre ou ainda antes do pecado original leio as viagens e escrevo o universo todo um dia hão-de escrever-me num folego só como eu queria e o papel não suportava pela fragilidade e simplicidade das folhas sinceras há quem não suporte a sinceridade de um rabisco de criança tal como o escrevo hoje vou pecar todos os dias em busca dessa salvação sublime da água limpa com que lavo o corpo da vida e tu meu amor de ontem de hoje de nunca mais escoltas-me a alma com os teus braços envolventes da morte que me visita tentando vender a sua fórmula milagrosa e me promete descontos em bordéis lisboetas porquê lisboa se me perco sempre longe dela dentro da minha cabeça eu digo-vos somos um povo com sonhos amputados e uma fome enorme de infinito

sábado, 19 de setembro de 2009

MESA DE CAFÉ

Um dia um rapaz conheceu uma rapariga. Não se conheciam de parte alguma. Depois começaram a encontrar-se numa mesa de café. E foi como se os seus dois mundos se reunissem a essa mesa. Ela bebia uma chávena de chá, aromático, ele um licor forte, alcoólico. E falavam de histórias de vida, em passados cruzados, de estradas e dos seus acidentes, da descoberta das cidades, das propriedades terapêuticas do ar, de aventuras, da maresia. Ele começou a apreciar-lhe os gestos do corpo, a expressão das mãos sobre a mesa. Mãos moldadas pelo trabalho, fortes e determinadas: como ela. Ele tinha mãos pequenas, dedos finos talhados para a escrita, mas nunca lhe dera a entender essa sua perspectiva do mundo. A única escrita que ela lhe conhecia eram as palavras soltas, aéreas, à volta daquela mesa. Havia ali, ao redor da mesa, à volta das palavras e nos gestos dos corpos um mundo em construção.
Pensava ele.
Cada vez que se sentavam a essa mesa, era como se outros mundos quotidianos se fechassem para sempre.
Naquele balão de noite insuflada, tudo parecia tão nítido como num sonho.
E durante o dia ele transportava-a na cabeça (agradava-lhe a sua companhia) e assim os seus dias passavam sem dar por isso. Os dias começavam-lhe a fazer sentido.
A rapariga, começou a não aparecer ao encontro da mesa redonda, receando que a pouco e pouco ele pudesse gostar verdadeiramente dela.
Ela deixou de aceitar qualquer convite, fechou-se de novo na sua vida quotidiana, de gestos repetidos e seguros, que lhe davam toda a aparência de segurança que ele adivinhava no seu olhar doce.
Ao escrever estas linhas, o rapaz, procurou incessantemente um fim para a história, que os conseguisse sentar de novo à volta daquela mesa mágica, mas não foi possível. Enquanto rematava a última frase, levantou os olhos momentaneamente do papel e estava uma rapariga na mesa do lado.

ANDO EU AQUI

Ando pr’aqui às voltas, mais reviravoltas,
Já pareço um daqueles fazedores de livros, desconstrutores,
melhor dizendo.
E no texto circular, em forma de onda,
perco-me no lábio dela, no teu lábio,
que me anuncia o sexo bom.
Ou então vou vadiar mais um pouco na baixa, com pombos
e excrementos empoleirados nos outdoors.
Nesta altura há-os dependurados das ruas estreitas,
nas ruas largas e rotundas com caras gigantes sem olhos.
Vazaram-nos como urnas despejadas,
mas dos orifícios não fluem lágrimas,
Natural que assim seja. Quem lidera não se emociona.
Isso é para os poetas, gente abjecta que ainda sente,
e sonha e amanhece sem noite dormida.
E fode e come e resplandece de peito nu,
e vibra ingenuamente ao som das palavras.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

SONO

Quando não escrevo, estranho esta cabeça equina.
Quando as palavras não beijam o papel da minha pele,
Adormeço. Entro no sono profundo dos pássaros nos ninhos.
Sobe-me à cabeça um novelo irreal.
O Pacheco anda-me na cabeça, voa de encontro
às estantes desarrumadas deste ninho.

Hoje há um voo dentro de mim, igual a todos os bandos
de libertinos, que sobreviverão à minha morte.
A boca vai ruminando a literatura clandestina.
Ingerindo letargia até atingir o climax da noite.

Bebo-te a boca, a língua, o sexo ovulado.
Troco-te por um negócio de cama desalinhada,
A minha sede apetece-te tocá-la.

A seda desenhada na pele de vinho,
Abraças-me e a madrugada entra-me
de rompante num corpo verde de seiva matinal.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

RUA OBLÍQUA

Desci a rua, fui a um bar: Marula. Ou talvez não fosse um bar. O balcão era em forma de barco e os clientes atiravam setas uns aos outros, até acertar no alvo. Bebi um copo de fogo e a minha alma ardeu momentaneamente, ou talvez as labaredas fossem mais prolongadas. No fundo do balcão uma jovem loura enverga um vestido de xadrez. Podia dar-lhe xeque-mate em dois lances. De seguida entrou um homem calvo, decidido. Calvo e decidido a beijá-la na boca do meu fogo. Ela pareceu-me não jogar bem e as mãos do homem embrutecido movimentavam-se no tabuleiro macio, de encontro ao balcão. A perna dele pressionava-a de encontro ao balcão e eu bebo mais um cálice de fogo.
As horas passam, mas estou lá há menos de vinte minutos. Os dardos cruzam-se à minha frente em trajectórias oblíquas, desafiando as bolas de fogo lançadas no hálito das bocas. Um dente de ouro reluz de encontro à lingua da loira. A bola de fogo torna-se incontrolável e o barman afunda-se um pouco mais no seu barco. Senta-se e fuma um cigarro. O alvo anuncia-se vitorioso e eu volto a casa atravessando as ruas estreitas, de luzes amareladas. Talvez vá dormir um pouco: ou cobrir.

sábado, 12 de setembro de 2009

CROW (raven)


Meu Corvo mestre,

Teu manto de penas arrastas

Sobre o meu corpo despido.

Espero-te à noite

Já não faço sentido.

Estás bem alto na árvore do céu

Negro sangue é o teu. Que tenho bebido,

do cálice luminoso do tempo

que tenho tido. Do tempo das trevas,

te tenho ouvido.

Tiraste-me aquele pedaço de voz,

imerso na noite.

Onde as tuas asas falavam de versos,

por entre copos redondos de sangue.

Ouço ainda o barulho de chávenas

no toque das mesas.

Uma praia de luzes surge

esfumada no meu sonho.

RESTOS

Quem somos nós depois de nós: restos
Detritos transportados em caixas de sapatos,
Caixinhas-homenagem, com laços
No pedaço de asco a que nos tranformam
Sem direito a recusar tais honrarias.
Por mim exijo a total integração
na terra. A ela voltar, às pradarias,
e aí repousar anónimo nos vales absortos
de neblina e de néctares e de vinho.
De mil bebedeiras padecer sem salvação.
E da tal terra desejar o último chão.
Fuck off e o tal dedo no ar: tudo o que me resta.

SOLO

Ensaias um solo profundo,
(o arco passeia-se sobre as cordas graves)
Rodopias por entre a multidão,
Herói em estórias
que ninguém leu.
Livro fechado, nunca usado, quedo
e mudo de palavras.
És tu, arrancado aos sonhos vazios,
tão loucos, tão frios.
És tu a lâmina que não corta,
como a tua ausência à minha porta
E no ar raro de respirar, sufocas
à beira da água, numa surda mágoa.
Na tua morte, um sulco de sémen.
Original.
(Shostakovich continua compondo quartetos de cordas)

Lisboa, 1984

UM BICHO PODEROSO

Com o 11 de Setembro ainda às voltas na cabeça, um testemunho de humanidade, a que vamos perdendo a cada dia que avança o tempo:

"...
É um bicho poderoso, este, uma massa animal tentacular e voraz, adormecida agora, lançando em redor as suas pernas e braços, como um polvo, digo: um polvo excêntrico, sem cabeça central, sem ordenação certa (natural); um grande corpo disforme, respirando por várias bocas, repousando (abandonado) e dormindo, suspirando, gemendo. Choramingado, às vezes. Não está todo à vista, mas metido nas roupas, ou furando aos bocados fora delas. Parece (acho eu, parece) uma explosão que atingiu um grupo de gente parada e, agora, o que está ali são restos de corpos mutilados: uma pernita de criança, um braço nu sozinho, um punho fechado (um adeus?... uma ameaça?...), um tronco mal coberto por uma camisa branca amarrotada. Ou seria, então, talvez, um desabamento súbito, uma avalanche de neve encardida, que nos cobriu a todos, ao acaso, aos bocados, e para ali ficámos, quietos e palpitando, à espera, quietos e confiantes, dum socorro improvável, cada vez mais (e as horas passam!) improvável, incerto, aguardando a luz da manhã, que chega sempre, que acaba sempre por chegar, para vivos e mortos, calados ou palrantes, ladinos ou soterrados , os que já desistiram da madrugada e os que, ainda, contra qualquer lógica, contra qualquer quantidade de esperança, confiam ainda e esperam.

Somos cinco numa cama..."

in "Comunidade", Luiz Pacheco, Ed. Forja, 1985; pag. 12 e 13

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

13 QUADRAS PARA MARIANA CORREIA

I

Hoje é o teu dia,

Faz dele oiro e alegria,

Especial como tu,

Um dia sem igual.

II

Dia de Setembro,

Número cinco,

Ano do século 21,

Dois mil e nove.

III

Treze dizem,

É número de sorte,

Tenho eu em ter-te filha,

Que esta prenda te dou.

IV

Uma prenda de palavras,

Sem laço, nem embrulho,

Por fazeres treze anos,

Como eu sinto orgulho.

V

Vais crescer cada vez mais,

Não sei onde vais parar,

Mas estarei sempre aqui,

Sabes que podes contar.

VI

Estás aqui no meu peito,

Neste dia como noutro qualquer,

Não importa o lugar,

Esteja eu onde estiver.

VII

Vais voar sem asas,

Bem alto, eu sei,

Ou dar asas ao sonho,

As que eu te dei.

VIII

Também vais navegar,

Nas ondas do mar

Com bom ou mau tempo

Mestre marinheira vais ficar.

IX

Mas por ora é dia de festa,

Todos estamos alegres por ti.

E logo acabada esta,

Outras virão, mais e melhores.

X

Poesia é prenda pobre,

É tudo o que tenho nos bolsos

Destas calças remendadas.

- Mas espera…!

XI

É claro que ainda virão os euritos,

Para alegrar o dia inteiro,

Pois a poesia afinal,

Não dá nem prós apitos.

XII

Já me faltam as palavras,

Treze quadras dão trabalho,

Por isso vou agora concluir,

Amanhã novas quadras vão surgir.

XIII

Treze breves anos hoje contas,

Com mais treze, vinte e seis,

E muitos outros virão,

Para anotar nos papéis.


Pai (5/09/2009)

(c) Paulo Correia 2009



FOGO

Lida com essa coisa de fogo que sentes
desprender-se das minhas palavras.
Na te escondas na boca fechada.
Nesse silêncio de água pouca,
insuficiente para apagar o mundo.
Para me apagar.