segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

CONTABILIDADE DESORGANIZADA

Deposito o último cheque do ano
escrevi nele uma carta
ao ministro das finanças
dizendo que não tem cobertura:
que é o resultado da crise
de valores em que me encontro.

outros terão valores mais altos
e as mãos enterradas em merda
mãos e patas neste lodaçal
passa-me o país pelas mãos
nas folhas dos jornais e tudo
tudo parece ficção.
Guardo as últimas edições
de contos para encadernar
e vão direitinhas para a galeria
dos contemporâneos.

Antes que se tornem clássicos
no pouco tempo que é já amanhã
e ainda me falam do ar
daquela fímbria de ar respirável
dum arco imaginário no céu
quando tudo isso tomba
de borco na irrespirável latrina.

domingo, 27 de dezembro de 2009

UM DIA

um dia havemos de parar o tempo
e registar a invenção
pará-lo a meio do telejornal
e na boca entreaberta do jornalista
anunciar a paragem
um dia havemos de dizer poesia de calções
quem sabe, um dia havemos de matar a morte
e de seguida beber uma cerveja fria.
um dia

sábado, 26 de dezembro de 2009

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

NATAL

Existe um natal rubro no ar límpido
ardendo num enorme tronco ao centro da sala
em combustão lenta dentro de mim.

uma sala cheia de crianças e sonhos por abrir
e outros sonhos de açúcar sobre a mesa
que uma noite longa nos fará deglutir

Os sinos tocam lá fora rasgando o céu gelado
e por dentro do peito acontece a fornalha
nas palavras ecoadas nos copos de vinho

Acontecem nesta noite estrelas à flor da pele
num firmamento de olhos que olham o brilho do olhar
o tal brilho cego de mãos postas a orar.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Ainda...

Ainda com o dia por terminar, vou vagueando na cidade. Há embrulhos que ainda estão incompletos e as pessoas circulam em ritmo acelerado, congestionando as ruas do centro. Tudo numa enorme agitação de sacos com embrulhos e eu alheio a tudo: apenas uma ligeira sensação de embrulhos incompletos na cabeça. Enquanto isso, o ar cinza rubro vislumbra-se entre dois montes de casario. A cidade está cansada e ébria de movimento e de destroços de arvoredos finos e folhagens empapadas no chão da tarde rubra. Rubra de plátanos tisnando as ruas. Dirijo-me a casa aos tais embrulhos que me esperam. Subo num ápice a escadaria de pedra. Entro. A tempestade tinha subtraído a tampa da minha casa, como uma maqueta esventrada e haviam embrulhos nos ares como balões coloridos. A cidade, agora desenhava um céu em tons fauves e subitamente a tensão aliviava-se-me nas temporas.

Instantes #3

Instantes #2

Instantes #1

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

VINTE DE DEZEMBRO

um destes dias
sopram-nos ao ouvido
e há amigos que nos enchem o peito

o céu é de um azul frio
na flor do inverno
e as núvens de algodão doce
colam-se à penumbra da memória
subi quarenta e seis degraus
e agora, na crista do tempo
lanço-me na curvatura da onda audaz.

(escrito com a faca suja de creme do bolo repartido)

Nota do autor: não acredito no tempo, mas a eternidade faz-se de pequenos socalcos.

(s/ título)

a palavra
apenas o som de letras
tilintando ecoando na boca
decreto a lei da linguagem nua
como um corpo ansiando a maré
um poeta já não é
foi soterrado na opulência do papel
amordaçado na caligrafia cerebral

eu canto o corpo desejado
o corpo da escrita como uma mulher nua
onde olhos lascivos desalinham cabelos
e tu a meu lado
escrevendo-me sozinha

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Paisagem com árvores e lago ao centro

O ar em lâminas de gelo corta o fim da tarde
no parque as árvores são plácidas
as suas ramagens como cortinas imóveis
bebem o espelho de água no epicentro da derrocada

eleva-se o cenário da noite
num azul púrpura redondo
e o teu corpo vem sentar-se
nas estrelas de vento.

domingo, 13 de dezembro de 2009

PRIMEIRO POEMA

Como se até agora nada tivesse escrito
lanço-me sobre a folha virgem, palavra gume
consumando o pecado original

a boca sangrando de vida
um fino cordão de dentro do ventre
como se a terra se abrisse inteira

a mão tremendo na busca da palavra
humedece o papel deformando-o
a escrita deforma o corpo fotográfico

opõe-lhe a luz à tinta opaca
que se espalha em camadas
como fresca madrugada
a escrita bebe-se inebriada solidão.

ARQITECTURA COMO ARTE


Agência BES - Altura
2008
Arq. Ana Costa


in Exposição Habitar Portugal 2006/2008
Selecção MAPEI/Ordem dos Arquitectos

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

AMANHÃ

transparentes paisagens tecem-se em mim
balbucio um desejo
o tempo ensinou-me como deve ser precedido de recolhimento e preces
o mágico ofício do barro


Al Berto

Olhar mais além,
sempre além de nós mesmos,
além das palavras meu amigo,
olhar e ver aonde os olhos nunca poderiam ver,
tocar onde mãos nunca ousariam tanger,

mãos e olhos paralelos constroem a geografia das palavras
os olhos conduzindo-as como rebanho irreverente
as mãos trigueiras, de marcas solares,
moldando a marcha do poema,

estas são as paisagens que semeio,
que viverão depois de mim
sobreviverão:
amanhã

CORPO

o sol entra
projecta uma sombra
porque há um corpo a seu lado
imprime no chão um arco de luz
ogival o arco desenha-se
na mão
toco por momentos esse corpo iluminado
no teu corpo nu

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

(s/ título)

Guardo uma concha de espuma no peito
e algas em vez de pulmões,
peixes pequenos, prateados
na orla liquefeita das estações.

Trago mensagens nas palavras
nessa espuma impressa na praia
em finos cordões de sal,
escrita com os dedos do mar.

um esqueleto no horizonte
é um barco,

estrelas do mar
cá na terra,

o azul é de brincar
azul-ar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

ARQUITECTURA #2 - Ensaio sobre a leveza

ARQUITECTURA #1

Acabei finalmente o projecto e despedi de imediato a engenheira.
Não quero mais peso nas minhas obras!

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

CATEDRAIS

Desenho pacientemente um templo em altas paredes
verticais, erguendo minhas mãos à luz, que penetra,
zenital,
nas paredes abrem-se brechas de uma poeira fina,
do cimo etéreo até à profundidade das galerias
subterrâneas.
O misterioso espaço que desenho sulca-me a alma
por instantes, tão breves como o ar ondulante,
por breves instantes de salvação,
condenando outras almas depois de mim,
ao peso imenso dessas paredes opacas na ascensão à luz.

LIVRO DA POBREZA E DA MORTE - terceiro livro (extracto)

1.

Talvez pesadas montanhas atravesse
por duros veios, sozinho com um mineral;
estou a tal profundidade, que não há fim que ver pudesse
nem distância: a proximidade é tudo o que acontece
e toda a proximidade é pedra, afinal.

Não sou ainda entendido em sofrimento,
por isso esta grande escuridão me empequenece;
mas se fores Tu: torna-te pesado, aparece:
que tua inteira mão em mim tenha cumprimento
e eu em ti com o meu relicário sedento.

in O Livro de horas, Rainer Maria Rilke, Ed. Assírio & Alvim, 2009, pag. 281

domingo, 6 de dezembro de 2009

(sem palavras - música portuguesa - atenção ao baterista)

(sem palavras - música portuguesa)

(sem palavras - música portuguesa)

REFLEXÕES

O homem enquanto ser social deve escutar outros homens, seus semelhantes. Também na produção artística o isolamento ou ensimesmamento, pode ser limitador da expressão pessoal e artística.
Partir dessa reflexão profunda do mundo e da vida com a atitude de honestidade, mas de absoluta liberdade é o melhor caminho para criar.

TOO HOT (a cave da cidade)

a cidade das colinas visita-me de novo
sinto a sua pele na minha
e vou esculpindo o poema
ergo andaimes à volta dele
grande nu artístico
nas avenidas da cidade
reconheço outros poemas
outros poetas
lá vai o pessoa-poeta, não funcionário
já passa das nove horas da noite
subindo a avenida
no seu passo decidido, mecânico
e decidido
a gabardina enfunada
como a vela de uma nau
lutando contra a chuva oblíqua
nas ruas fala-se espanhol
por entre a multidão
cruzo-me com artistas
a caminho do oriente
pincelando caligrafias natalícias
a noite desceu-me na boca
desceu o seu manto
e as prostitutas exibem longas pernas
e ligas e meias de malha larga
apertando as coxas de veludo
aqui fora está um frio psicológico
de rachar conventos
desço à cave
onde paredes pintadas de noite
dançam em ritmos sincopados
peço uma garrafa e dois copos
um para cada mão
a música incha-me a alucinação
da penumbra
entram espectadores com casacos de noite
o ar vai aquecendo até ficar sufocante
dum lado e do outro, nas mesas
os corpos desprendem-se do chão
no ritmo oscilatório das cordas
aos batimentos da pele tensa das carótidas
as veias desenhadas no pescoço
do soprador, engrossam
até encher os copos de vinho
tudo dança, tecto e paredes
nas sombras projectadas de flashes

O jazz, dizem,
é um antídoto para a vida monótona:
tonifica
desconstrói
corrói

SUBSTÂNCIAS



Drugs

And all I see is little dots
Some are smeared and some are spots
Feels like a murder but that’s alright
Somebody said there’s too much light
Pull down the shade and it’s alright
It’ll be over in a minute or two.

I’m charged up...don’t put me down
Don’t feel like talking...don’t mess around
I feel mean...i feel o.k.
I’m charged up...electricity

The boys are making a big mess
This makes the girls all start to laugh
I don’t know what they’re talking about
The boys are worried, the girls are shocked
They pick the sound and let it drop
Nobody know what they’re talking about

I’m charged up...I’m kinda wooden
I’m barely moving...i study motion
I study myself...i fooled myself
I’m charged up...it’s pretty intense.
I’m charged up...don’t put me down
Don’t feel like talking...don’t mess around
I feel mean...i feel o.k.
I’m charged up...electricity.

in Fear of Music, Talking Heads, 1979

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

SUITE RÚSTICA

a boca gritou a uma só voz soprano
(as orquestras de espuma vogando)
a casa gritou do quarto de bonecas
(o som oco de árvores percutidas)
o corpo imerso no pólen
(o prelúdio de flores campestres)
a terra deglutindo o sol

DA TERRA

Amar o mar completa a minha vida
com o tacto de um amor imenso.
Amar areia e margem
arrebata-me de júbilo e paixão.
Mas veio o vento e, por momentos,
amargurou o meu corpo, a oscilar.
E está o sol aqui, depois de uns dias
de jardim obscurecido, a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem
e dançam como os insectos
ébrios em redor do pólen.

in As Fábulas, Fiama Hasse Pais Brandão

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

MULHER AO CENTRO DA CASA

Uma mulher descansa
exausta do trabalho
solta um lamento, não de prazer
um gemido
a sua vida esbate-se na sombra
da parede baça
a mesa ao centro da casa
está posta e espera
por quem não chega
mas essa espera desenvolve-se
sempre incessante nos dias
da ausência de algúem
que a torna ausente

ela tornou-se no próprio tempo
as espáduas erguem-se como ponteiros
na marcha dos minutos dos dias
e sempre a mesa ao centro
um naco de pão um prato redondo
um sol apagado lá fora
ninguém aparece
adormece

o poema tecendo nas suas mãos
um pano só
no linho da noite.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

ARENA RUBRA

Tenho os dedos doridos do papel
cortados na orla das palavras
tenho música em vez de sede
e uma fome sem verbo
bebo mais uma garrafa
até me rebentarem as águas
da manhã.

Dizem que o sol é excessivo
que mata fora da sombra
o matador bebe mais um copo de sangue
e eu acompanho-o na faena

inclino-me sobre o teu peito
e desenho pacientemente
os contornos de mais um poema
com a língua materna

A CERTAIN RATIO

Passei toda a vida
a fingir que sou eu
que nunca fui outro
a fingir essa possibilidade
improvável
numa matemática sem abrigo
tal como o horizonte imperfeito
da ciência dos homens

e sempre vagueei fora de mim
como se tratasse de um segredo
só meu ouviram
só meu

mas perante a equação resolvida
sem resultado certo: o infinito
diziam confirmo o axioma
de nenhuma certeza porém
tal como o horizonte certo

a fina linha que separa corpo e alma
habita em mim e no outro eu
e como essa impossível ciência
os traz inseparáveis em mim
como falsos siameses.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009