segunda-feira, 30 de novembro de 2009

DEZEMBRO




Agora não me apetece escrever. Pouso o caderninho de capa preta e a caneta. Pouso a cabeça a um canto da almofada. Dou um pouco de ordem nas pilhas de livros e papéis rabiscados. Abro a janela e deixo dezembro entrar. Com o primeiro dia do mês entra uma ponta de ar frio, espalhando um manto branco, gélido de papel, pelo chão do sótão.
Basta-me ouvir a percussão dos pássaros nas telhas e ver o ar gelado no azul do céu.
São as paisagens que a metereologia oferece.

COBERTURA CONSUMADA

Hoje a engenheira fez um flic flac à retaguarda
e tirou-me um peso de cima.

domingo, 29 de novembro de 2009

DOS MALEFÍCIOS DA LITERATURA

"No meu meio, ensinavam-me que a vida era a fonte da literatura e que a literatura devia ser fiel à vida, fiel à sua verdade. E o meu erro foi precisamente ter-me afastado da vida, ter ido contra a sua verdade. A verdade da vida não se assemelha à sua imagem exterior. A verdade, isto é, a natureza da vida deve ser tal e qual ela é e não de modo diferente. Se me afastei desta verdade foi porque só expus uma série de fenómenos da vida que não podem, como é evidente, reflecti-la correctamente. O resultado é que acabei por seguir apenas por uma falsa estrada, deformando a realidade.
Actualmente, não sei se caminho realmente pela boa via; de qualquer modo quero deixar o mundo literário em plena efervescência e fugir do meu quarto sempre cheio de fumo de tabaco. Os livros que nele se amontoam oprimem-me, ao ponto de me impedirem de respirar. Expõem todas as espécies de verdades, desde a verdade histórica até à verdade do comportamento humano, e eu já não sei que utilidade elas têm. No entanto, elas entravam-me e eu debato-me nas suas redes, vivendo como um insecto apanhado na armadilha da teia de aranha."

in
A Montanha da alma, Gao Xingjian, Ed. Dom Quixote, pag. 25

sábado, 28 de novembro de 2009

DESENHO DIGITAL

Outros pianos #5

Outros pianos #4

Outros pianos #3

Outros pianos #2

OUTROS PIANOS #1

china

um dia a china deteve-se nos meus olhos
com milhões de olhos cintilantes
que viram nas águas prateadas do tejo
outros milhões de pensamentos afogados
represados nessas águas
levei-a a ver as abóbadas bordadas dos jerónimos
pano maior do artesanato da alma lusa
julgando a minha alma que
vinha ela ver a alma de lisboa
não a minha
na partida as naus estavam paradas no estuário
e das paredes brancas de alfama
escorriam pequenas lágrimas de luz.

O MILAGRE DA ROSA

Há dias conheci-te
és muito bela
vista daqui, dos meus olhos cegos
nunca te toquei
nunca nos tocámos
há dias que quase sinto a tua pele
na imensa solidão do ar
se te tocasse talvez eclodisse uma flor:

ontem plantei uma rosa no teu peito,
espero que não seja plastificada pelo tempo.

ELÉCTRICO

Há um desenho meu no blogue de um(a) grande poeta e amiga. Aqui

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

ERIK SATIE

PIANO NU

CIDADE IMAGINADA II

Ouço o crepitar da cidade nas ruas,
pessoas que na sua trajectória
rectilínea, quase perfeita
digo quase na esperança do choque
frontal com destroços de mãos
e pernas e velocidade de ancas
na penumbra dos corpos lançados
na fúria do instante,
libertação de energia
liberação
o sexo na rua é puro: é livre
respira-se a plenos pulmões
o ar transforma-se,
a cidade sublima-se
os corpos abrem como pétalas.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

terça-feira, 24 de novembro de 2009

SOPA DE VIRGULAS

Entre colunas surge um vazio,
Podia ser uma porta de vento
é uma vírgula é uma vírgula
um lapso infinitesimal

uma equação na língua
um patamar sem palavra
um bocejo
um ar, soprado no verso,
um livro por escrever

uma página branca
como uma pomba azul
tão improvável
no céu do poema

uma pena

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

VI

Que dia é hoje?
pouco importa o tempo
relativo
O que importa é estarmos aqui
Cabelos ao vento sobre a praia
espraiada do poema
Aqui deitados na areia,
eu e a minha garrafa contemplando
a lua
A água do mar beija-me os dedos
do pés
do outro lado, na outra margem
os teus cabelos
apertados contra o meu peito de vidro
mais uma onda mergulha-me as pernas
e tu afundas-te, afundas a cabeça
de cabelos circulares
no fundo da minha pele
Que horas são?
É hora do inverno, momento de acertar
a vida desconcerto.
- Não uso relógio - algúem diz.
- Não tenho tempo
Será que o tempo falhou esta praia?
Chocou no farol da noite por sinal
Volto a colocar a garrafa em plano inclinado
bebendo mais um pouco de noite
enquanto os olhos de menino
procuram o sol na maré.

domingo, 22 de novembro de 2009

(sem palavras - Ídolos #3)

(sem palavras - Idolos #2)

(sem palavras - Ídolos #1)

V

O firmamento desce-me até ao chão
da cortina.
Agora vejo à transparência
um projecto de noite.
Por detrás da cortina: o teu corpo
em sombras chinesas,
desenhado a tinta de carne viva,
o ecrã da tua pele em estreia absoluta
ondula em movimentos de braços
e pernas e ancas todo fragilidade
ou realidade ausente.

A arte: sim.
Pode libertar,
ou cegar-nos de vez.

IV

Existem paisagens na terra do poema
entre mim e as palavras cultivadas
nos renques da terra fecunda
mas essa terra arada
é uma ilusão a meus olhos
a terra é magra como papel
branca, suavemente suja
como os punhos da camisa que arrasto
sobre as mesas de café aromáticas

No jazz, um ritmo de várias terras,
junta-se e danca-me no corpo,
Estou possuído pelo balanço de cordas,
na síncope percutiva, na febre do peito
Coltrane lavra em todas as direcções,
noite dentro, em hotéis que são
a minha casa desde sempre
que me perco no som.

III

O que de dentro de mim prevalece
Uma essência, uma rocha,
quase detrito.
Escrito à mão: manuscrito
palavra pausada e calma
num mundo vertigem aflito

Mantenho-me à parte
reflicto
o único caminho é pensar
tudo é efémero mesmo
a dor
E vem o rio e lava o mar
e amanheço sem acordar.

Quando tudo desmorona
a rocha: essa pedra enorme
é uma âncora viva
que me prende ao firmamento.

sábado, 21 de novembro de 2009

II

Luz e sombra
vestígios do invisível
ou visibilidade eterna
vértices de luz
borges cegou e
via-nos com as mãos
nas mãos nas folhas
escurecidas de claridade
há muito que não vejo
as cores na verde copa
das árvores das mãos
desramadas
tenho uma floresta
no ventre que mata
a fome da fome
saciada
tenho e não tenho
nada ou tudo ou frio
no gelo do fogo
no degelo e de novo
a floresta que vem
e que vai mais além
e ondula na câmara escura
da Luz e sombra.

(sem palavras - música de câmara #4)

(sem palavras - música de câmara #3)

(sem palavras - música de câmara #2)

(sem palavras - música de câmara #1)

I

Um som bruto, informe
um gesto bruto
uma forma áspera
de representar o real
o poema surge a
meus olhos toscamente
fabricado
saído das minhas
rudes mãos do

Silêncio

é esse silêncio emudecido
que atravessa a palavra
rude e bruto, áspero
como escamas do meu
corpo salgado
camadas de pele
ressequida por ventos

Oceânicos

de ondas revolvendo
ondas areais
aéreas areais
nessa espessura de
água e areia
a pele purifica-se
o poema de sal
cobre o interior

Total

TIME FOR NOTHING

Tea time
time for tea
oriental leaves, me
time thee
bloody tea
purple red
from my veins
or vine instead
tea for tea
for two
leave me
white tea
black tea
yellow tea
universal watered
yellow river
flowing free

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

TALVEZ

Talvez procure uma fonte,
talvez uma sede
uma fonte que gere um rio
para ser visto
Talvez te procure a ti
e não apareças
Talvez eu não veja
ou tu disfarçes
Talvez eu te encontre
quando partes
Talvez não seja nada
de preocupante
Será que entrarás
de rompante?

ARTE CÍCLICA

Há exposição de arte no museu do ciclismo:
quadros de bicicleta com rodas empenadas
e cavaletes com suas damas montadas
o parque em frente folheia o catálogo
de árvores, numa chávena manguito.

as águas sulfúreas desaguam nos cisnes,
e estes, roxos de volúpia voam em espirais.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Sem palavras - epílogo

Foram dez pequenas estórias da História da Música ocidental.

(sem palavras #10)

(sem palavras #9)

(sem palavras #8)

(sem palavras #7)

AUTO-RETRATO SEM CABEÇA

O ar é branco,
é um enorme elefante
pintado nas paredes
do sexo milenar

um século de luzes
não foi suficiente
para nos afastar
das cavernas

concluo o livro
a capa abate-se
e desfaz-se
sob a língua

o médico receita-me
três dias de vigília
para acordar na água
molhado de sémen.

Corro a maratona
no suor atordoado
da cabeça entre as mãos:
o mundo desviou-se de mim.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

QUINTA-FEIRA

Amanhã vou à cidade ver os barcos.
Pode ser que as tuas mãos acendam uma vela
no meu peito ou desenhem um sulco na pele.

Podes até amarrar-me ao poema,
E dali partir para bem longe,
Perder as graças do mar.

RIOS

Hoje sentei-me na moldura do arade,
e vi a massa aquosa que deslizava
como um espelho ondulado

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

33 RPM

Vivi durante algum tempo,
em frente a uma loja de discos.
Acordava e tomava um pequeno-almoço giratório,
numa rodela de vinyl.


UM DIA

um dia gostaria de desenhar a estrela
que acendes em mim
se a mão me não trair na tremura
e desse momento fazer um poema
de luz enquanto dura
e colocá-lo geometricamente
no teu peito com ternura.

(sem palavras #6)

domingo, 15 de novembro de 2009

(sem palavras #5

(sem palavras #4)

2012

2012 - Cheguei a casa como se tivesse regressado de um planeta de outra galáxia. O que a Ficção Científica nos pode fazer à cabeça.

(sem palavras #3)

(sem palavras #2)

(sem palavras #1)

sábado, 14 de novembro de 2009

(sem palavras)

OCEANOGRAFIA LITORAL

Uma onda de meio metro
acaricia-me o peito e flutuo
no seu dorso macio,
vem depois uma onda de um metro,
a face de encontro à sua parede,
em aspiração marinha, a boca inunda-se,
em grupos as ondas engrossam
enrolam-se nos membros,
nas barbatanas emprestadas.
O mar agita-se e a onda sobe ao metro e meio
de massa corporal submersa,
e megulho por debaixo dela até a respiração
ofegante surgir e os músculos travem uma luta desigual
com a força do oceano.
Por vezes deslizo no teu lábio a uma velocidade
estonteante, desenhando um rasto de espuma no teu corpo.
Surge então uma onda de dois metros ou mais,
encapelada por cima dos olhos erguidos ao céu,
e a embarcação, uma pequena casca, salta-me das mãos,
desenvolvo então um bailado circular, sem ar no pulmão,
espero que a tua mão me alcance,
ansiado pelo teu corpo doirado na toalha, que não avisto,
sinto-me como náufrago, uma coluna de água entra furiosa
na minha alma e lá vem a onda dos três metros de salvação.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

NOITES #1

Ao lado da cama construo um esbelto templo helénico. As colunas de livros aguardam um entablamento imaginário. Espero que a noite não desmorone.

CONVENTOS

Como uma monja que se recolhe, ou uma criança que explora uma torre, subiu as escadas, deteve-se na janela, chegou ao quarto de banho. Ali estava o pavimento verde e a torneira a gotejar. Era um vazio perto do centro da vida; um sótão. As mulheres devem deixar os seus adornos. Ao meio-dia, devem despir-se. Espetou o grampo na almofada e deixou o chapéu amarelo de plumas sobre a cama. Os lençóis passados estendiam-se numa longa faixa branca. A sua cama seria cada vez mais estreita. A vela queimara-se até metade, pois lera até tarde as "Memórias do Barão de Marbot". Lera pela noite dentro, até à retirada de Moscov. Pois o Parlamento funcionava até uma hora tão avançada que Richard insistia em que ela, depois da doença, repousasse sem distúrbios. E, na verdade, preferia ler tranquilamente a retirada de Moscov. Ele sabia-o. De modo que o quarto era um sótão, a cama estreita; e ao ficar ali deitada, a ler, pois sofria de insónia, não podia despojar-se de uma virgindade preservada desde a infância e que lhe aderia ao corpo como uma túnica. Adorável quando menina, chegou, súbitamente um instante - junto ao rio, nos bosques de Clieveden, por exemplo - em que por alguma retracção desse frio espírito, se sentira falhar. E depois, em Constantinopla, e outras vezes mais. Via o que lhe faltava. Não era beleza; não era inteligência. Era essa coisa central, que se comunica; alguma coisa de cálido que quebra a superfície e encrespa o frio contacto de homens e mulheres, ou de mulheres entre si.

in Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf, pag. 30-31, Ed. Livros do Brasil

HUMOR - Babi yar

ESTEPES

Shostakovich desenha um imenso arco de sombra,
sob as neves eternas dos gulags.
Um arco que nos traz gelados: mãos e pés,
e uma alma que obstinadamente flutua.

Babi Yar com os seus trinta mil corpos de neve,
repousa na soleira firme da minha porta,
onde a vizinha de cabelos alvos me anuncia
um Largo que nunca mais parece acabar.

As estepes desfilam em reflexos,
no pára-brisas do meu carro,
reflexos de árvores descomunais.

E um alce de hastes ramificadas,
relembra-me na minha mão vasculada,
um punho levemente fechado.

EQUILIBRISMO

Uma engenheira aparece-me em sonhos a construir macaquinhos no sótão. É uma questão de estabilidade.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

SOM

Quando o som desperta,
Gera-se uma pradaria liquefeita,
com pássaros empoleirados
nas linhas de telefone.

Geram-se lagos amplos,
bebendo outros lagos,
e vai crescendo o som
deslizando na água sedosa.

As cascatas desaguam
em rios que por sua vez
retornam à melodia inicial.

No estuário, as densas malhas orquestrais
Dissolvem o que restava do silêncio,
Na boca deste poema banal.

MÚSICA #1

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

MÚSICA

Quando a música navega na cabeça como um barco naufragado.

SONG TO THE SIREN

NOS PLANALTOS CALCÁRIOS

Há quanto tempo a ternura te corrói os dedos apagados,
se tu não fumas e prometeste a ti mesma apagar a fogueira.
Com um copo meio redondo atacas o incêndio,
meio cheio de água para que o fogo encaixe na
metade côncava do meu apagamento.

A floresta há muito tempo definhou, e, com ela,
os planaltos calcários ficaram alvos como a lua,
embora pássaros pretos de bico vermelho,
persistam na colheita das últimas bagas de sangue.

Eclodiram nesse espaço, crateras profundas,
como algares nos poros da tua pele.
As chuvas mornas desenhavam-te
as formas de encontro ao pano húmido da blusa.

Nesse momento, o caminho mais curto
parece ecoar-nos na cabeça como um mapa alucinado.
Deito-me na erva e observo a humidade
translúcida do teu corpo, como se os contornos de dedos
me devolvessem os lábios da carne desejada.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

RADIOACTIVIDADE

CASAS (poema arquitectónico)

Vivo numa casa com oito casas dentro.
Seis estão desocupadas.
Quantas ficam?
Eu vivo no tecto da casa.
As janelas dão directamente para o céu,
como o tal vaso alado onde embarquei um dia,
rumo à cidade das torres gêmeas,
apagadas por uma borracha enorme,
do papel amarrotado da minha alma.

Para além de mim,
existe uma enfermeira e um gato na base da casa:
na banda colorida da sua saia.
Escuto a patética e nada mais se ouve
nos restantes sete oitavos deste poço de almas.

Há outros poemas espalhados pela casa:
outros poetas.
Existem vozes límpidas neste conjunto de casas edificado,
que acordam amanhecendo envoltas em papel
e neblina espessa.

Há poemas circulando na seiva desta árvore de brincar,
onde as tuas mãos um dia vão habitar.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

REMAR

Quando eu ia ao clube de remo,
o rio inchava como uma quilha no lodaçal,
as águas alastravam então e as gaivotas
partiam em voos aleatórios sobre as salinas.

O gemido dos remos contornava os pilares
da velha ponte, em equilíbrio de braços e
pernas e nervos distendidos sob o sol zenital.
Colava-se a camisola à pele,
a pele colando-se à própria pele,
em esforço de músculos rotativos.

A dinâmica das marés em tardes de domingo,
pesava-me no tronco e braços, no plano de água
espelhando a cidadela no bordo do cais.

DÚVIDAS

Pirro desceu à Terra para tentar confirmar a existência do Homem. No café onde entrou havia demasiado ruído de fundo e retornou sem resposta concludente.

CLUSTERS

HOMEM (a propósito dos muitos homens dentro de nós)

Homem-rã
Homem-rato
Homem-cão
Homem-marido
Homem-chifrudo
Homem-homem
Homem muito homem
Homem-mulher
Homem-bomba
Super-homem
Homem-pássaro
Homem-borboleta
Brutamontes
Homem-elefante
Lobisomem
Homem-poeta
Homem-proveta
Homem-peta

sábado, 7 de novembro de 2009

FUNDAMENTO

O rio conduz as águas no trilho do rebanho,
A multidão organiza o curso do tempo,
enquanto o rio retorna à nascente
desapontado com o leito exíguo, minúsculo.

O poeta, comedor de papel,
enrola a pasta sob a língua
e pensa no próximo livro,
que acaba de ser adiado, pela metereologia.

A chuva arrasta os papéis na corrente,
notícias em directo da intempérie,
recortes de sangue nos freixos da margem.

Um silêncio de águas represadas, reprimidas,
vai engordando na baía do ventre,
um fruto: (dizem) o pecado original.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

MÚSICA MATINAL

Sons de aço, martelados,
Eco límpido de savanas,
Os tigres famintos lambem as patas,
As unhas recolhem-se como navalhas,
Catedrais vítreas nos seus olhos,
Cidades de dez milhões,
acordadas ao som do metropolitano,
Os falos de betão apontando ao céu
perfurando o voo das aves,
As filas de tartarugas reluzentes,
avançam e ofuscam os trabalhadores,
Param a cada hesitação das mãos no volante,
O café fumega denso sobre o rio,
A empregada ajeita a alça do soutien
e enfia-me um donut no indicador:
um casamento improvável às 9h de doçura.

"Gebet" - Mörike Lieder - Hugo Wolf

ÀS VEZES É BOM DESCER À TERRA

"LXXI
Quanto mais o homem cultiva as artes, menos se entesa.
Cria-se um divórcio mais sensível entre o espírito e o bruto.
Apenas o bruto se entesa bem e a fornicação é o lirismo
do povo.
Fornicar é aspirar a entrar num outro, e o artista nunca sai de
si próprio.
Esqueci-me do nome daquela porca... Ah! bah! Hei-de reencontrá-lo
no dia do juízo final
A música dá a ideia do espaço.
Todas as artes, mais ou menos; pois elas são número e o número é uma
tradução do espaço.
Querer todos os dias ser o maior dos homens!"

in O Meu Coração a Nu, Charles Baudelaire, Guimarães Editores, 1988

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

MARILYN

PARQUE NATURAL

Tenho pouco a dizer,
Tão pouco que pareço vazio,
que pareço louco,
de tão pouco te ver.

Esqueci-me do vento,
De que ar movimento,
é estar enfunado,
em forma de quilha, empinado.

Passo os dias no parque,
a regar pássaros,
a comer raízes,
colho os pomos e o ventre.

Estou ausente de mim,
mesmo quando me abres a terra,
e me tocas na pele com a lâmina,
cintilas, como gota rubra no peito.

E escavas adentro de mim,
mais fundo, além do abismo,
do fogo, do breve sismo,
do tremor da mão.

Um filho no leito,
dorme alheio, num corpo plácido
sonhando nas mãos em gesto ácido,
no mundo futuro repousa o veneno.

Não tenho sono, não durmo,
Deambulo na noite quase nu,
abro a janela, pinto paredes
roseas da tua carne na minha.

Só escrevo de noite,
Só escrevo de dia,
de Outono ou Inverno,
ou nas chamas do Inferno.

Ardo nas páginas nocturnas,
quase chama, quase frio.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

(s/ título)

Pouso no copo
os meus lábios de vinho,
ao de leve sobre os teus.
Pouso a mão,
no seio da tua mão,
no cetim alinhavado
dos teus ombros.
Mais tarde ou mais cedo,
chegarás a tempo...

FORMALISMO

Formas lúcidas:
Um seio, uma mão,
o braço de prata.
Formas lúdicas:
A pele, uma bola,
um corpo jogado
ao eixo.
Formas lúbricas:
um septo, uma cratera de fogo,
lábios afastados.
A síntese destas geometrias:
o hemisfério da bala disparada.

BUENOS AIRES EN MI CABEZA

ILFORD

Ontem descobri na minha carteira um papel velho, misturado com cartões, pedaços de identidade, algumas fotografias deformadas na bordadura de renda.
O papel dizia qualquer coisa imperceptível, transportada dum tempo incerto: pela primeira vez pensei ser o tempo certo para escrever as memórias.
Voltei a colocar o papel amarrotado no separador da carteira.
Pensei: uma fotografia a preto e branco pode levar-nos intimamente a uma labareda da alma esquecida.

domingo, 1 de novembro de 2009

CAPA

As Paisagens, tal como eu previa autonomizaram-se. Ganharam fôlego, encheram o peito de ar. Já respiram em pulmões plenos. Agora só precisam de uma casca, digo, uma Capa.

A Capa que foi mandada fazer por medida está a ser alinhavada, antes de costurada e pronta a vestir. Vai ficar bonita (espero!), bonita e resistente às intempéries: uma capa para as quatro estações.

Obrigado Anabela e bom trabalho!

JORGE DE SENA

Ontem 1 de Novembro, em Lisboa, no CCB houve indícios de Sinais de Fogo.