segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
CONTABILIDADE DESORGANIZADA
escrevi nele uma carta
ao ministro das finanças
dizendo que não tem cobertura:
que é o resultado da crise
de valores em que me encontro.
outros terão valores mais altos
e as mãos enterradas em merda
mãos e patas neste lodaçal
passa-me o país pelas mãos
nas folhas dos jornais e tudo
tudo parece ficção.
Guardo as últimas edições
de contos para encadernar
e vão direitinhas para a galeria
dos contemporâneos.
Antes que se tornem clássicos
no pouco tempo que é já amanhã
e ainda me falam do ar
daquela fímbria de ar respirável
dum arco imaginário no céu
quando tudo isso tomba
de borco na irrespirável latrina.
domingo, 27 de dezembro de 2009
UM DIA
e registar a invenção
pará-lo a meio do telejornal
e na boca entreaberta do jornalista
anunciar a paragem
um dia havemos de dizer poesia de calções
quem sabe, um dia havemos de matar a morte
e de seguida beber uma cerveja fria.
um dia
sábado, 26 de dezembro de 2009
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
NATAL
ardendo num enorme tronco ao centro da sala
em combustão lenta dentro de mim.
uma sala cheia de crianças e sonhos por abrir
e outros sonhos de açúcar sobre a mesa
que uma noite longa nos fará deglutir
Os sinos tocam lá fora rasgando o céu gelado
e por dentro do peito acontece a fornalha
nas palavras ecoadas nos copos de vinho
Acontecem nesta noite estrelas à flor da pele
num firmamento de olhos que olham o brilho do olhar
o tal brilho cego de mãos postas a orar.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Ainda...
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
VINTE DE DEZEMBRO
sopram-nos ao ouvido
e há amigos que nos enchem o peito
o céu é de um azul frio
na flor do inverno
e as núvens de algodão doce
colam-se à penumbra da memória
subi quarenta e seis degraus
e agora, na crista do tempo
lanço-me na curvatura da onda audaz.
(escrito com a faca suja de creme do bolo repartido)
Nota do autor: não acredito no tempo, mas a eternidade faz-se de pequenos socalcos.
(s/ título)
apenas o som de letras
tilintando ecoando na boca
decreto a lei da linguagem nua
como um corpo ansiando a maré
um poeta já não é
foi soterrado na opulência do papel
amordaçado na caligrafia cerebral
eu canto o corpo desejado
o corpo da escrita como uma mulher nua
onde olhos lascivos desalinham cabelos
e tu a meu lado
escrevendo-me sozinha
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Paisagem com árvores e lago ao centro
no parque as árvores são plácidas
as suas ramagens como cortinas imóveis
bebem o espelho de água no epicentro da derrocada
eleva-se o cenário da noite
num azul púrpura redondo
e o teu corpo vem sentar-se
nas estrelas de vento.
domingo, 13 de dezembro de 2009
PRIMEIRO POEMA
lanço-me sobre a folha virgem, palavra gume
consumando o pecado original
a boca sangrando de vida
um fino cordão de dentro do ventre
como se a terra se abrisse inteira
a mão tremendo na busca da palavra
humedece o papel deformando-o
a escrita deforma o corpo fotográfico
opõe-lhe a luz à tinta opaca
que se espalha em camadas
como fresca madrugada
a escrita bebe-se inebriada solidão.
ARQITECTURA COMO ARTE
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
AMANHÃ
balbucio um desejo
o tempo ensinou-me como deve ser precedido de recolhimento e preces
o mágico ofício do barro
Al Berto
Olhar mais além,
sempre além de nós mesmos,
além das palavras meu amigo,
olhar e ver aonde os olhos nunca poderiam ver,
tocar onde mãos nunca ousariam tanger,
mãos e olhos paralelos constroem a geografia das palavras
os olhos conduzindo-as como rebanho irreverente
as mãos trigueiras, de marcas solares,
moldando a marcha do poema,
estas são as paisagens que semeio,
que viverão depois de mim
sobreviverão:
amanhã
CORPO
projecta uma sombra
porque há um corpo a seu lado
imprime no chão um arco de luz
ogival o arco desenha-se
na mão
toco por momentos esse corpo iluminado
no teu corpo nu
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
(s/ título)
e algas em vez de pulmões,
peixes pequenos, prateados
na orla liquefeita das estações.
Trago mensagens nas palavras
nessa espuma impressa na praia
em finos cordões de sal,
escrita com os dedos do mar.
um esqueleto no horizonte
é um barco,
estrelas do mar
cá na terra,
o azul é de brincar
azul-ar.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
ARQUITECTURA #1
Não quero mais peso nas minhas obras!
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
CATEDRAIS
verticais, erguendo minhas mãos à luz, que penetra,
zenital,
nas paredes abrem-se brechas de uma poeira fina,
do cimo etéreo até à profundidade das galerias
subterrâneas.
O misterioso espaço que desenho sulca-me a alma
por instantes, tão breves como o ar ondulante,
por breves instantes de salvação,
condenando outras almas depois de mim,
ao peso imenso dessas paredes opacas na ascensão à luz.
LIVRO DA POBREZA E DA MORTE - terceiro livro (extracto)
Talvez pesadas montanhas atravesse
por duros veios, sozinho com um mineral;
estou a tal profundidade, que não há fim que ver pudesse
nem distância: a proximidade é tudo o que acontece
e toda a proximidade é pedra, afinal.
Não sou ainda entendido em sofrimento,
por isso esta grande escuridão me empequenece;
mas se fores Tu: torna-te pesado, aparece:
que tua inteira mão em mim tenha cumprimento
e eu em ti com o meu relicário sedento.
in O Livro de horas, Rainer Maria Rilke, Ed. Assírio & Alvim, 2009, pag. 281
domingo, 6 de dezembro de 2009
REFLEXÕES
Partir dessa reflexão profunda do mundo e da vida com a atitude de honestidade, mas de absoluta liberdade é o melhor caminho para criar.
TOO HOT (a cave da cidade)
sinto a sua pele na minha
e vou esculpindo o poema
ergo andaimes à volta dele
grande nu artístico
nas avenidas da cidade
reconheço outros poemas
outros poetas
lá vai o pessoa-poeta, não funcionário
já passa das nove horas da noite
subindo a avenida
no seu passo decidido, mecânico
e decidido
a gabardina enfunada
como a vela de uma nau
lutando contra a chuva oblíqua
nas ruas fala-se espanhol
por entre a multidão
cruzo-me com artistas
a caminho do oriente
pincelando caligrafias natalícias
a noite desceu-me na boca
desceu o seu manto
e as prostitutas exibem longas pernas
e ligas e meias de malha larga
apertando as coxas de veludo
aqui fora está um frio psicológico
de rachar conventos
desço à cave
onde paredes pintadas de noite
dançam em ritmos sincopados
peço uma garrafa e dois copos
um para cada mão
a música incha-me a alucinação
da penumbra
entram espectadores com casacos de noite
o ar vai aquecendo até ficar sufocante
dum lado e do outro, nas mesas
os corpos desprendem-se do chão
no ritmo oscilatório das cordas
aos batimentos da pele tensa das carótidas
as veias desenhadas no pescoço
do soprador, engrossam
até encher os copos de vinho
tudo dança, tecto e paredes
nas sombras projectadas de flashes
O jazz, dizem,
é um antídoto para a vida monótona:
tonifica
desconstrói
corrói
SUBSTÂNCIAS
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
SUITE RÚSTICA
(as orquestras de espuma vogando)
a casa gritou do quarto de bonecas
(o som oco de árvores percutidas)
o corpo imerso no pólen
(o prelúdio de flores campestres)
a terra deglutindo o sol
DA TERRA
com o tacto de um amor imenso.
Amar areia e margem
arrebata-me de júbilo e paixão.
Mas veio o vento e, por momentos,
amargurou o meu corpo, a oscilar.
E está o sol aqui, depois de uns dias
de jardim obscurecido, a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem
e dançam como os insectos
ébrios em redor do pólen.
in As Fábulas, Fiama Hasse Pais Brandão
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
MULHER AO CENTRO DA CASA
exausta do trabalho
solta um lamento, não de prazer
um gemido
a sua vida esbate-se na sombra
da parede baça
a mesa ao centro da casa
está posta e espera
por quem não chega
mas essa espera desenvolve-se
sempre incessante nos dias
da ausência de algúem
que a torna ausente
ela tornou-se no próprio tempo
as espáduas erguem-se como ponteiros
na marcha dos minutos dos dias
e sempre a mesa ao centro
um naco de pão um prato redondo
um sol apagado lá fora
ninguém aparece
adormece
o poema tecendo nas suas mãos
um pano só
no linho da noite.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
ARENA RUBRA
cortados na orla das palavras
tenho música em vez de sede
e uma fome sem verbo
bebo mais uma garrafa
até me rebentarem as águas
da manhã.
Dizem que o sol é excessivo
que mata fora da sombra
o matador bebe mais um copo de sangue
e eu acompanho-o na faena
inclino-me sobre o teu peito
e desenho pacientemente
os contornos de mais um poema
com a língua materna
A CERTAIN RATIO
a fingir que sou eu
que nunca fui outro
a fingir essa possibilidade
improvável
numa matemática sem abrigo
tal como o horizonte imperfeito
da ciência dos homens
e sempre vagueei fora de mim
como se tratasse de um segredo
só meu ouviram
só meu
mas perante a equação resolvida
sem resultado certo: o infinito
diziam confirmo o axioma
de nenhuma certeza porém
tal como o horizonte certo
a fina linha que separa corpo e alma
habita em mim e no outro eu
e como essa impossível ciência
os traz inseparáveis em mim
como falsos siameses.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
segunda-feira, 30 de novembro de 2009
DEZEMBRO
Agora não me apetece escrever. Pouso o caderninho de capa preta e a caneta. Pouso a cabeça a um canto da almofada. Dou um pouco de ordem nas pilhas de livros e papéis rabiscados. Abro a janela e deixo dezembro entrar. Com o primeiro dia do mês entra uma ponta de ar frio, espalhando um manto branco, gélido de papel, pelo chão do sótão.
Basta-me ouvir a percussão dos pássaros nas telhas e ver o ar gelado no azul do céu.
São as paisagens que a metereologia oferece.
domingo, 29 de novembro de 2009
DOS MALEFÍCIOS DA LITERATURA
Actualmente, não sei se caminho realmente pela boa via; de qualquer modo quero deixar o mundo literário em plena efervescência e fugir do meu quarto sempre cheio de fumo de tabaco. Os livros que nele se amontoam oprimem-me, ao ponto de me impedirem de respirar. Expõem todas as espécies de verdades, desde a verdade histórica até à verdade do comportamento humano, e eu já não sei que utilidade elas têm. No entanto, elas entravam-me e eu debato-me nas suas redes, vivendo como um insecto apanhado na armadilha da teia de aranha."
in A Montanha da alma, Gao Xingjian, Ed. Dom Quixote, pag. 25
sábado, 28 de novembro de 2009
china
com milhões de olhos cintilantes
que viram nas águas prateadas do tejo
outros milhões de pensamentos afogados
represados nessas águas
levei-a a ver as abóbadas bordadas dos jerónimos
pano maior do artesanato da alma lusa
julgando a minha alma que
vinha ela ver a alma de lisboa
não a minha
na partida as naus estavam paradas no estuário
e das paredes brancas de alfama
escorriam pequenas lágrimas de luz.
O MILAGRE DA ROSA
és muito bela
vista daqui, dos meus olhos cegos
nunca te toquei
nunca nos tocámos
há dias que quase sinto a tua pele
na imensa solidão do ar
se te tocasse talvez eclodisse uma flor:
ontem plantei uma rosa no teu peito,
espero que não seja plastificada pelo tempo.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
CIDADE IMAGINADA II
pessoas que na sua trajectória
rectilínea, quase perfeita
digo quase na esperança do choque
frontal com destroços de mãos
e pernas e velocidade de ancas
na penumbra dos corpos lançados
na fúria do instante,
libertação de energia
liberação
o sexo na rua é puro: é livre
respira-se a plenos pulmões
o ar transforma-se,
a cidade sublima-se
os corpos abrem como pétalas.
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
terça-feira, 24 de novembro de 2009
SOPA DE VIRGULAS
Podia ser uma porta de vento
é uma vírgula é uma vírgula
um lapso infinitesimal
uma equação na língua
um patamar sem palavra
um bocejo
um ar, soprado no verso,
um livro por escrever
uma página branca
como uma pomba azul
tão improvável
no céu do poema
uma pena
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
VI
pouco importa o tempo
relativo
O que importa é estarmos aqui
Cabelos ao vento sobre a praia
espraiada do poema
Aqui deitados na areia,
eu e a minha garrafa contemplando
a lua
A água do mar beija-me os dedos
do pés
do outro lado, na outra margem
os teus cabelos
apertados contra o meu peito de vidro
mais uma onda mergulha-me as pernas
e tu afundas-te, afundas a cabeça
de cabelos circulares
no fundo da minha pele
Que horas são?
É hora do inverno, momento de acertar
a vida desconcerto.
- Não uso relógio - algúem diz.
- Não tenho tempo
Será que o tempo falhou esta praia?
Chocou no farol da noite por sinal
Volto a colocar a garrafa em plano inclinado
bebendo mais um pouco de noite
enquanto os olhos de menino
procuram o sol na maré.
domingo, 22 de novembro de 2009
V
da cortina.
Agora vejo à transparência
um projecto de noite.
Por detrás da cortina: o teu corpo
em sombras chinesas,
desenhado a tinta de carne viva,
o ecrã da tua pele em estreia absoluta
ondula em movimentos de braços
e pernas e ancas todo fragilidade
ou realidade ausente.
A arte: sim.
Pode libertar,
ou cegar-nos de vez.
IV
entre mim e as palavras cultivadas
nos renques da terra fecunda
mas essa terra arada
é uma ilusão a meus olhos
a terra é magra como papel
branca, suavemente suja
como os punhos da camisa que arrasto
sobre as mesas de café aromáticas
No jazz, um ritmo de várias terras,
junta-se e danca-me no corpo,
Estou possuído pelo balanço de cordas,
na síncope percutiva, na febre do peito
Coltrane lavra em todas as direcções,
noite dentro, em hotéis que são
a minha casa desde sempre
que me perco no som.
III
Uma essência, uma rocha,
quase detrito.
Escrito à mão: manuscrito
palavra pausada e calma
num mundo vertigem aflito
Mantenho-me à parte
reflicto
o único caminho é pensar
tudo é efémero mesmo
a dor
E vem o rio e lava o mar
e amanheço sem acordar.
Quando tudo desmorona
a rocha: essa pedra enorme
é uma âncora viva
que me prende ao firmamento.
sábado, 21 de novembro de 2009
II
vestígios do invisível
ou visibilidade eterna
vértices de luz
borges cegou e
via-nos com as mãos
nas mãos nas folhas
escurecidas de claridade
há muito que não vejo
as cores na verde copa
das árvores das mãos
desramadas
tenho uma floresta
no ventre que mata
a fome da fome
saciada
tenho e não tenho
nada ou tudo ou frio
no gelo do fogo
no degelo e de novo
a floresta que vem
e que vai mais além
e ondula na câmara escura
da Luz e sombra.
I
um gesto bruto
uma forma áspera
de representar o real
o poema surge a
meus olhos toscamente
fabricado
saído das minhas
rudes mãos do
Silêncio
é esse silêncio emudecido
que atravessa a palavra
rude e bruto, áspero
como escamas do meu
corpo salgado
camadas de pele
ressequida por ventos
Oceânicos
de ondas revolvendo
ondas areais
aéreas areais
nessa espessura de
água e areia
a pele purifica-se
o poema de sal
cobre o interior
Total
TIME FOR NOTHING
time for tea
oriental leaves, me
time thee
bloody tea
purple red
from my veins
or vine instead
tea for tea
for two
leave me
white tea
black tea
yellow tea
universal watered
yellow river
flowing free
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
TALVEZ
talvez uma sede
uma fonte que gere um rio
para ser visto
Talvez te procure a ti
e não apareças
Talvez eu não veja
ou tu disfarçes
Talvez eu te encontre
quando partes
Talvez não seja nada
de preocupante
Será que entrarás
de rompante?
ARTE CÍCLICA
quadros de bicicleta com rodas empenadas
e cavaletes com suas damas montadas
o parque em frente folheia o catálogo
de árvores, numa chávena manguito.
as águas sulfúreas desaguam nos cisnes,
e estes, roxos de volúpia voam em espirais.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
AUTO-RETRATO SEM CABEÇA
é um enorme elefante
pintado nas paredes
do sexo milenar
um século de luzes
não foi suficiente
para nos afastar
das cavernas
concluo o livro
a capa abate-se
e desfaz-se
sob a língua
o médico receita-me
três dias de vigília
para acordar na água
molhado de sémen.
Corro a maratona
no suor atordoado
da cabeça entre as mãos:
o mundo desviou-se de mim.
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
QUINTA-FEIRA
Pode ser que as tuas mãos acendam uma vela
no meu peito ou desenhem um sulco na pele.
Podes até amarrar-me ao poema,
E dali partir para bem longe,
Perder as graças do mar.
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
33 RPM
em frente a uma loja de discos.
Acordava e tomava um pequeno-almoço giratório,
numa rodela de vinyl.
UM DIA
que acendes em mim
se a mão me não trair na tremura
e desse momento fazer um poema
de luz enquanto dura
e colocá-lo geometricamente
no teu peito com ternura.
domingo, 15 de novembro de 2009
2012
sábado, 14 de novembro de 2009
OCEANOGRAFIA LITORAL
acaricia-me o peito e flutuo
no seu dorso macio,
vem depois uma onda de um metro,
a face de encontro à sua parede,
em aspiração marinha, a boca inunda-se,
em grupos as ondas engrossam
enrolam-se nos membros,
nas barbatanas emprestadas.
O mar agita-se e a onda sobe ao metro e meio
de massa corporal submersa,
e megulho por debaixo dela até a respiração
ofegante surgir e os músculos travem uma luta desigual
com a força do oceano.
Por vezes deslizo no teu lábio a uma velocidade
estonteante, desenhando um rasto de espuma no teu corpo.
Surge então uma onda de dois metros ou mais,
encapelada por cima dos olhos erguidos ao céu,
e a embarcação, uma pequena casca, salta-me das mãos,
desenvolvo então um bailado circular, sem ar no pulmão,
espero que a tua mão me alcance,
ansiado pelo teu corpo doirado na toalha, que não avisto,
sinto-me como náufrago, uma coluna de água entra furiosa
na minha alma e lá vem a onda dos três metros de salvação.
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
NOITES #1
CONVENTOS
ESTEPES
sob as neves eternas dos gulags.
Um arco que nos traz gelados: mãos e pés,
e uma alma que obstinadamente flutua.
Babi Yar com os seus trinta mil corpos de neve,
repousa na soleira firme da minha porta,
onde a vizinha de cabelos alvos me anuncia
um Largo que nunca mais parece acabar.
As estepes desfilam em reflexos,
no pára-brisas do meu carro,
reflexos de árvores descomunais.
E um alce de hastes ramificadas,
relembra-me na minha mão vasculada,
um punho levemente fechado.
EQUILIBRISMO
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
SOM
Gera-se uma pradaria liquefeita,
com pássaros empoleirados
nas linhas de telefone.
Geram-se lagos amplos,
bebendo outros lagos,
e vai crescendo o som
deslizando na água sedosa.
As cascatas desaguam
em rios que por sua vez
retornam à melodia inicial.
No estuário, as densas malhas orquestrais
Dissolvem o que restava do silêncio,
Na boca deste poema banal.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
NOS PLANALTOS CALCÁRIOS
se tu não fumas e prometeste a ti mesma apagar a fogueira.
Com um copo meio redondo atacas o incêndio,
meio cheio de água para que o fogo encaixe na
metade côncava do meu apagamento.
A floresta há muito tempo definhou, e, com ela,
os planaltos calcários ficaram alvos como a lua,
embora pássaros pretos de bico vermelho,
persistam na colheita das últimas bagas de sangue.
Eclodiram nesse espaço, crateras profundas,
como algares nos poros da tua pele.
As chuvas mornas desenhavam-te
as formas de encontro ao pano húmido da blusa.
Nesse momento, o caminho mais curto
parece ecoar-nos na cabeça como um mapa alucinado.
Deito-me na erva e observo a humidade
translúcida do teu corpo, como se os contornos de dedos
me devolvessem os lábios da carne desejada.
terça-feira, 10 de novembro de 2009
CASAS (poema arquitectónico)
Seis estão desocupadas.
Quantas ficam?
Eu vivo no tecto da casa.
As janelas dão directamente para o céu,
como o tal vaso alado onde embarquei um dia,
rumo à cidade das torres gêmeas,
apagadas por uma borracha enorme,
do papel amarrotado da minha alma.
Para além de mim,
existe uma enfermeira e um gato na base da casa:
na banda colorida da sua saia.
Escuto a patética e nada mais se ouve
nos restantes sete oitavos deste poço de almas.
Há outros poemas espalhados pela casa:
outros poetas.
Existem vozes límpidas neste conjunto de casas edificado,
que acordam amanhecendo envoltas em papel
e neblina espessa.
Há poemas circulando na seiva desta árvore de brincar,
onde as tuas mãos um dia vão habitar.
segunda-feira, 9 de novembro de 2009
REMAR
o rio inchava como uma quilha no lodaçal,
as águas alastravam então e as gaivotas
partiam em voos aleatórios sobre as salinas.
O gemido dos remos contornava os pilares
da velha ponte, em equilíbrio de braços e
pernas e nervos distendidos sob o sol zenital.
Colava-se a camisola à pele,
a pele colando-se à própria pele,
em esforço de músculos rotativos.
A dinâmica das marés em tardes de domingo,
pesava-me no tronco e braços, no plano de água
espelhando a cidadela no bordo do cais.
DÚVIDAS
HOMEM (a propósito dos muitos homens dentro de nós)
Homem-rato
Homem-cão
Homem-marido
Homem-chifrudo
Homem-homem
Homem muito homem
Homem-mulher
Homem-bomba
Super-homem
Homem-pássaro
Homem-borboleta
Brutamontes
Homem-elefante
Lobisomem
Homem-poeta
Homem-proveta
Homem-peta
sábado, 7 de novembro de 2009
FUNDAMENTO
A multidão organiza o curso do tempo,
enquanto o rio retorna à nascente
desapontado com o leito exíguo, minúsculo.
O poeta, comedor de papel,
enrola a pasta sob a língua
e pensa no próximo livro,
que acaba de ser adiado, pela metereologia.
A chuva arrasta os papéis na corrente,
notícias em directo da intempérie,
recortes de sangue nos freixos da margem.
Um silêncio de águas represadas, reprimidas,
vai engordando na baía do ventre,
um fruto: (dizem) o pecado original.
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
MÚSICA MATINAL
Eco límpido de savanas,
Os tigres famintos lambem as patas,
As unhas recolhem-se como navalhas,
Catedrais vítreas nos seus olhos,
Cidades de dez milhões,
acordadas ao som do metropolitano,
Os falos de betão apontando ao céu
perfurando o voo das aves,
As filas de tartarugas reluzentes,
avançam e ofuscam os trabalhadores,
Param a cada hesitação das mãos no volante,
O café fumega denso sobre o rio,
A empregada ajeita a alça do soutien
e enfia-me um donut no indicador:
um casamento improvável às 9h de doçura.
ÀS VEZES É BOM DESCER À TERRA
Quanto mais o homem cultiva as artes, menos se entesa.
Cria-se um divórcio mais sensível entre o espírito e o bruto.
Apenas o bruto se entesa bem e a fornicação é o lirismo
do povo.
Fornicar é aspirar a entrar num outro, e o artista nunca sai de
si próprio.
Esqueci-me do nome daquela porca... Ah! bah! Hei-de reencontrá-lo
no dia do juízo final
A música dá a ideia do espaço.
Todas as artes, mais ou menos; pois elas são número e o número é uma
tradução do espaço.
Querer todos os dias ser o maior dos homens!"
in O Meu Coração a Nu, Charles Baudelaire, Guimarães Editores, 1988
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
PARQUE NATURAL
Tão pouco que pareço vazio,
que pareço louco,
de tão pouco te ver.
Esqueci-me do vento,
De que ar movimento,
é estar enfunado,
em forma de quilha, empinado.
Passo os dias no parque,
a regar pássaros,
a comer raízes,
colho os pomos e o ventre.
Estou ausente de mim,
mesmo quando me abres a terra,
e me tocas na pele com a lâmina,
cintilas, como gota rubra no peito.
E escavas adentro de mim,
mais fundo, além do abismo,
do fogo, do breve sismo,
do tremor da mão.
Um filho no leito,
dorme alheio, num corpo plácido
sonhando nas mãos em gesto ácido,
no mundo futuro repousa o veneno.
Não tenho sono, não durmo,
Deambulo na noite quase nu,
abro a janela, pinto paredes
roseas da tua carne na minha.
Só escrevo de noite,
Só escrevo de dia,
de Outono ou Inverno,
ou nas chamas do Inferno.
Ardo nas páginas nocturnas,
quase chama, quase frio.
terça-feira, 3 de novembro de 2009
(s/ título)
os meus lábios de vinho,
ao de leve sobre os teus.
Pouso a mão,
no seio da tua mão,
no cetim alinhavado
dos teus ombros.
Mais tarde ou mais cedo,
chegarás a tempo...
FORMALISMO
Um seio, uma mão,
o braço de prata.
Formas lúdicas:
A pele, uma bola,
um corpo jogado
ao eixo.
Formas lúbricas:
um septo, uma cratera de fogo,
lábios afastados.
A síntese destas geometrias:
o hemisfério da bala disparada.
ILFORD
O papel dizia qualquer coisa imperceptível, transportada dum tempo incerto: pela primeira vez pensei ser o tempo certo para escrever as memórias.
Voltei a colocar o papel amarrotado no separador da carteira.
Pensei: uma fotografia a preto e branco pode levar-nos intimamente a uma labareda da alma esquecida.
domingo, 1 de novembro de 2009
CAPA
A Capa que foi mandada fazer por medida está a ser alinhavada, antes de costurada e pronta a vestir. Vai ficar bonita (espero!), bonita e resistente às intempéries: uma capa para as quatro estações.
Obrigado Anabela e bom trabalho!
sábado, 31 de outubro de 2009
SÁBADOS
um carro que passa lá fora,
um apito de sábado no jornal sobre a mesa,
há uma névoa mortal que me envolve a cabeça.
Existe uma manhã nos flocos cereais
um torpor no corpo bebido
mais uma aresta da minha avenida
que tive ontem percorrida.
e antes de ontem,
a pé ou de fugida
todos os dias
e hoje imóvel
me detenho inteiro
com tal torpor verdadeiro.
DIG LAZARUS! DIG
um precipício de paredes
doiradas
cavam bem fundo
nos poços da memória
em busca de um fundamento
de uma razão
ou o simples pulsar do coração
as palavras são rochedos
na aresta da maré nua.
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
FINAL DE UMA ODE
Ana Cristina César
in Poesia Brasileira do Sec. XX, pag. 264-265, Ed. Antígona, 2002
MARGEM (aos observadores atentos de rios)
onde ninguém passa,
sentado e quieto como as pedras
deste ribeiro da vida que observo.
Sem que ninguém se aperceba
que o rio não traz água,
que a secura também é um leito
onde sozinho me vai desaguar.
INFLUENZA
Continuo a ler a biografia de Gabo.
PIANO
e como isso te provocava desconforto nos dedos.
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
TÚNEL DE VÔO
na alma.
Atravessou-me o portal
dos olhos.
(em forma de abóbada
de berço)
Os cães, ao sentir tal ser esvoaçante,
anicharam o seu corpo quente
nas omaplatas.
Através desse portal avisto
o universo inteiro:
montanhas de lixo
rios com portagem
poços de chuva
gente veloz
caixas de papel
corpos de sombra
A felicidade deve ter-me visitado,
em forma de pássaro.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
HEART AND SOUL (One will burn)
A journey that leads to the sun,
Soulless and bent on destruction,
A struggle between right and wrong.
You take my place in the showdown,
I'll observe with a pitiful eye,
I'll humbly ask for forgiveness,
A request well beyond you and I.
Heart and soul, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
An abyss that laughs at creation,
A circus complete with all fools,
Foundations that lasted the ages,
Then ripped apart at their roots.
Beyond all this good is the terror,
The grip of a mercenary hand,
When savagery turns all good reason,
There's no turning back, no last stand.
Heart and soul, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
Existence well what does it matter?
I exist on the best terms I can.
The past is now part of my future,
The present is well out of hand.
The present is well out of hand.
Heart and soul, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
One will burn, one will burn.
Heart and soul, one will burn.
in "Closer", Joy Division, lyrics by Ian Curtis
terça-feira, 27 de outubro de 2009
(s/ título)
Serão a floresta lúcida?
Ou uma alma adiada?
Interrogo-me,
Deixarei de existir,
depois de vertida a tinta sobre o papel?
Ou será tudo isto inútil?
A anunciada inutilidade da arte
consumar-se-à ao toque dos dedos
do leitor sobre a página?
O papel, esse, continua imaculado,
suspenso dos precipícios dos homens.
Que geografia absurda para o desencontro.
Não conhecerei os meus leitores, jamais.
E no entanto essa impossibilidade
constrói o ventre do poema.
ARTE CONCRETA
da camisa,
há amigos que me visitam sempre,
quando a luz se extingue.
Uma amiga disse-me um dia,
ter sonhos em forma de Arte.
A única arte que lhe conheci,
na altura, revelou-se nas garrafas
que guardava debaixo da cama:
era uma sede imensa de infinito.
Hoje bebo dessas garrafas vazias,
quando me visita a tristeza.
Mas ela já não me visita.
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
NO TEU OLHAR
No teu olhar existem barcos,
Existem sóis,
Existe a luz,
Existem outros olhos,
que a escrita dos meus livros traduz,
No teu olhar existe o meu,
E outras coisas por explicar,
No teu olhar existe o mar.
OUVE
discursando,
sobrepondo-se aos pássaros do parque.
Havia sistemas complexos,
naquela tarde.
Havia arte nos teus lábios rubros.
Havia flores no jardim
e chá sobre a mesa.
Havia palavras na doçura das tuas mãos.
BRAD
dia vinte e dois de outubro
do ano de dois mil e nove,
poema breve,
escrito com a ponta dos dedos,
o monitor bem à minha frente,
percutindo dedo e tecla,
numa maquinação crepuscular,
o fogo irradiando da cabeça,
ígnea,
os olhos enevoados,
brad mehldau na cabeça,
o som do piano em ecos
de oitavas em cascata,
o parque nas minhas costas,
enche-me o quotidiano
de arvoredos, densos,
florestais.
os barcos remando no lago
enchem-se de peixes fantásticos
e crianças atiram bolas de pão
aos pombos.
ÚLTIMA HORA
Stop
Vasos de guerra,
em forma de pevide,
avançam em direcção à praia.
Avançam e recuam:
bizarro.
Alguns são engolidos pelas vagas.
Stop
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
(s/ título)
sobre a mesa,
só existia um poema.
À vez, cada verso
alimentava uma boca.
Nasci nessa casa,
onde um sol de oiro,
vinha muito cedo,
iluminar a página branca,
na raiz do dia.
PALAVRAS (a uma amiga)
verde
com
laranjas
ave de fogo
no ombro
incêndio
escombro
terra
só
terra
pó
rio terno
água
de inverno
sol
que baste
q b
Olê
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
SUSSURRO
escuto pérolas rolando na tua pele,
Esse sussurro alimenta-me
as noites inteiras de esperança.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
LIVRO
os dedos doridos.
Primeiro em círculos concêntricos,
as outras mãos, na boca da página,
bebem-me as palavras:
constroi-se um sonho na boca dos outros.
Estarei a sair de dentro de mim?
Um universo inteiro, desconhecido
e atento entra-me casa adentro.
Serei um abrigo imaginado,
um templo de luz.
domingo, 18 de outubro de 2009
SERÃO MUSICAL
palavras amarrotadas por uma luz que cega.
Duas ou três vezes por noite acendo o candeeiro,
procuro o papel e vomito as palavras ruminadas.
A luz apaga-se na voz, adormecida.
O teu corpo abre uma cratera de vida,
no meu corpo, eu queria viajar na cidade,
nos túneis das palavras que me disseste,
não te quero esta noite, nunca mais.
Outra vez acendo a cabeça de prata,
uma fome de ascender à montanha do mal,
uma lâmina no cume, reluzente,
abraça o teu tronco de sangue,
a nudez da noite pode completar,
a sinfonia da solidão.
FIM DA ÉPOCA BALNEAR
a onda era mais alta, de uma espuma doce.
Ali na praia tudo parecia embarcar,
até o vento te soprava até mim.
Agora caminho no areal e vejo um reflexo surdo,
estendo-me na duna e espero pássaros,
aves enormes pincelando sombras aleatórias.
Espero a minha própria sombra à beira-mar.
NAVIO DE ESPELHOS
O navio de espelhos não navega, cavalga Seu mar é a floresta que lhe serve de nível Ao crepúsculo espelha sol e lua nos flancos Por isso o tempo gosta de deitar-se com ele Os armadores não amam a sua rota clara (Vista do movimento dir-se-ia que pára) Quando chega à cidade nenhum cais o abriga O seu porão traz nada nada leva à partida Vozes e ar pesado é tudo o que transporta E no mastro espelhado uma espécie de porta Seus dez mil capitães têm o mesmo rosto A mesma cinta escura o mesmo grau e posto Quando um se revolta há dez mil insurrectos (Como os olhos da mosca reflectem os objectos) E quando um deles ála o corpo sobre os mastros e escruta o mar do fundo Toda a nave cavalga (como no espaço os astros) Do princípio do mundo até ao fim do mundo |
Mario Cesariny
Mario Cesariny
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
REGRAR
Digo-vos, regras são precisas,
escrevo sobre tudo,
e sobre o vazio.
Sobre homens e mulheres
e sobre o frio.
Sobre a vida e a noite
e como os dias me escolhem,
o melhor poema.
A regra é escrever,
quando me apetecer,
a toda a hora,
todo o dia, desde a madrugada
até anoitecer.
Sou homem regrado,
de não ter regra nenhuma,
tenho uma semente de liberdade,
um puro sangue, que me cavalga nas veias,
com regras é claro: dois coices no ar,
sou mesmo uma freira.
FOME
A minha está elevada acima dela.
Paira no ar como um balão.
Tenho de subir sessenta e oito degraus
para aceder ao céu, à minha porta.
À noite emergem do esgoto os ratos.
De esgoto em esgoto os ratos
avançam e a lua resplandece.
Três homens, três, de luvas
enlutados, conduzem um pequeno
carro de mão, trazendo pela trela
o pequeno cão.
Abrem um a um os contentores,
libertam o lixo e seus vapores.
Montam um esplanada com chapéu de noite
e remexem em sacos, pilhas, maravilhas,
couves-flor, cadeiras de baloiço,
ferros a vapor e separam restos,
organizam tudo, antes da partida.
E eu, no meu apartamento,
covil suspenso no ar,
a seis metros da rua,
faço disso poesia,
dessa fome a meus pés,
descalça na noite fria.
PALAVRAS
palavras bonitas,
minúsculas e belas.
Agora voam no ar,
de todos os tamanhos,
sopradas por vírgulas,
como rebanhos.
Palavras leves,
como o sonho,
breves como chuva,
redondas como vinho,
da tua uva.
DIA
Talvez tenha bebido
demasiada noite.
A garrafa está meia,
esqueci metade
da minha vida,
nesse meio vazio
do vaso vertido.
O dia nasceu,
com ele renasço,
a boca cansada,
a língua adormecida,
porém.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
SOUVENIR
são sempre as merdas burocráticas
que dão cabo de mim.
as horas que gasto a fazer relatórios
as horas que gasto
a preencher as horas que gasto
a fazer relatórios
as horas que gasto
a preencher as horas que gasto
a preencher as horas que gasto
num ciclo infinito
que na prática me faria
nunca parar de justificar horas
se não fosse
o teorema de Cauchy
no Blog Tolan
GUME
A aresta por onde ando,
exige equilíbrio absoluto,
silêncio absoluto.
Qualquer desvio de rota
compromete a imagem no espelho.
Os estilhaços de espuma
cortam ou recortam a onda.
Dá-me a tua mão,
a tua areia de mel,
o teu corpo todo.
Descansa o teu tempo
no meu oceano de papel.
Abro-te um livro de água.
JLB
acompanhou-me nesta segunda-feira,
de casa para o trabalho, acordado e lúcido,
um cego incha-nos os sentidos,
ficamos com a pele arrepiada.
Ele olha as ruas da cidade
como ductos nostálgicos,
ouve-se um bandoneon,
transporta Buenos Aires nos poros,
eu fico a escutar a melodia,
como se nunca a cascata de som
me tivesse visitado: Astor.
Queria que me visitasses,
assim, nalguns dias,
nas segundas-feiras:
serei cego como tu.
Veremos.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
MAR DA PALHA OU LÁ PERTO
metálicamente brancas,
descrevem um rio.
Voam doidas no estuário,
por entre os galhos
da ponte imponente.
Suspensas dos braços
do senhor cristo-rei,
defecam verticalmente no tejo.
A merda penetra nas águas profundas,
como uma seta na corrente.
Nas margens ergue-se o casario,
alucinado por carros velozes.
Tenho um air-bag na cabeça,
só não sei quando vai rebentar.
Toda a minha vida é um acidente,
sem pronto-socorro.
As aves reentram no meu sonho,
cagam-me de novo na cabeça.
As águas lodosas do rio,
entram nos ministérios.
- Eu vi ministros com pés de barro.
terça-feira, 13 de outubro de 2009
BEETHOVEN
com as nove sinfonias.
Vou ficar a ouvir pela noite dentro.
Pode ser que pela manhã,
me chegue a Alegria (9ª op. 125)
CALOR
O calor desnuda-me o corpo,
a carne envolta em água,
um cambalear, uma vertigem.
O fogo de outubro,
do outono em mim,
ou fora de mim,
o asfalto em chamas.
Os pés colam-se ao chão.
Estou imóvel com o plano do papel
ao nível da vista, e escrevo:
a cidade dos corpos ternos.
domingo, 11 de outubro de 2009
JOGO
a mão tocando levemente
o triângulo da pele,
Entre as pernas,
toco-te o âmago da escrita.
Ponto final.
Uma vírgula surge então,
despenteada no ventre redondo.
Uma língua descontrolada
e ofegante reproduz-se
dentro da boca oval.
A língua desenrola-se
e o ventre emudece.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
CONCURSO
enrolados num cordel,
qual Camões, com tal cuidado,
afastados do plano de água.
Não fora molharem-se as folhas,
duma escrita marginal,
sem margens nem caudal.
Concorri como da Ponte,
para salvar tal manuscrito,
como água para a sede
eu bebi palavras loucas,
de mil e tantas bocas,
de mil e uma penas,
julgando escrever poemas.
O resultado já se sabe,
Na cauda vou ficar,
Pois ao escrever tanta merda,
O juri não vai suportar.
Lá me vem à cabeça o Bocage,
outro fiel companheiro,
destes negócios de trampa,
do buraco de ser último,
se fez enfim o primeiro.
(escrito em Caldas da Rainha numa alucinação de águas termais - Outubro 2009)
domingo, 4 de outubro de 2009
PAPÉIS
assaltam-me os sonhos.
Durmo de dia em razão do medo,
do escuro.
Deitado na cama,
os sapatos colados aos pés,
leitosos.
Uma luz vertical atravessa-me
a face ausente, sonhada.
O mundo desabou ontem,
com a estante dos livros.
A sala vazia inundou-se de folhas,
de um outono avermelhado.
Coloco o meu corpo num canto neutro,
redondo.
Tenho um livro colado ao céu-da-boca,
e pastagens edificadas na terra húmida.
APPLE TREE
Apple tree, apple tree,
What else can you be?
The fruit is juicy,
The soil is free,
The sky above,
Staring at me.
Apple tree, apple tree,
Golden fruit, round and red,
as round as it can be,
Take my soul
to your earthly bed.
in Northern forest, English poems
Paulo Correia 2006
O MELHOR DO HOMEM
in Onde vivi e para que vivi, Henry David Thoreau, Edições Quasi, 2008
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
O POETA
de tanto caminhar,
na estrada de pó,
na poeira do sonho.
Chega com pérolas grossas
de água na fronte.
Procura uma fonte,
uma água, uma sede.
O poeta que chega sempre,
parte invariavelmente de novo.
Em busca de uma geografia
de palavras improváveis.
Impossíveis.
Há dias em que as palavras
me saem das veias,
como pássaros purpúreos.
Estou cansado deste voo circular,
que se liberta da humidade matinal.
O poeta tem as mãos sujas,
da sombra dos dias.
O poeta cresce como erva daninha,
nos quintais.
O seu peito nu,
acolhe um coração fraco,
de corda.
Feito de ruas estreitas,
medievais, num tempo antigo
e lento: arrítmico.
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
DECLARAÇÃO
pelo teu IRS
Sinto até prurido no reembolso,
das tuas nádegas.
Só irei à repartição,
para me sentar na tua calculadora.
E sentir o volume excessivo
da coima que me ofereces.
Quando te sentares
no meu rendimento,
diminuirá a tua fortuna.
O prazo de te entregar
expirou.
E tu expiras de prazer
no expediente.
O COBRIDOR
| ||||||||||||||||||
terça-feira, 29 de setembro de 2009
NOTA IMPORTANTE
Paisagens de papel não é poesia.
Qualquer semelhança com a realidade,
é pura literatura.
Esta escrita impura vai ser encerrada.
Deve ser lida de pernas pró ar,
cabelos ao vento, mãos na terra,
sol na moleira,
e muita doideira.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Post Scriptum
O país amanheceu cor-de-rosa desmaiado e laranja clarinho com as outras cores do espectro solar bem representadas. Alguns raios de sol tornaram-se mais nítidos. Os portugueses parecem ter afirmado que estão fartos do centro e das suas propostas. Assim deslocaram as suas opções de voto para a periferia. À esquerda e à direita engrossaram as fileiras do descontentamento.
O povo voltou a confirmar uma orientação política para os destinos do seu país, mas não com a mesma clareza de antes. Parecem recomendar mais debate e humildade a quem decide. Resta saber se os actores a quem foi conferido o papel difícil de consensos, saberão interpretar os sinais desta pequena mudança. Porque é disso que se trata.
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
Portimão
nas fissuras dos dedos, impressas no frio.
Aconselharam-me um creme gordo
para a vida gretada.
E surge-me o Guadiana,
que engorda a olhos vistos,
ladeando a planície trigueira.
Desagua no maior lago da península,
ali pr'os lados de Marrocos.
Sou um mouro, transfigurado é certo: polido.
Não como o Aleixo,
que tinha mãos ásperas da poesia.
Este livro... construo-o sobre as ruínas
dos pesqueiros sorvidos,
do Arade cansado,
dos seus suores de maré baixa.
A ponte ergue-se sobre o rio,
como a tal torre em Paris:
feita do mesmo aço rendilhado.
A Casa Inglesa invade-me os Natais,
onde o jogo de xadrez me permite
o sacrifício das figuras com peões solitários.
Talhos de sal esquartelados no leito
dessa terra húmida, sulfúrea.
Terra de sóis.
Eu vivi aqui neste canto do barlavento,
ninguém falava a mesma língua.
Entreguei-me à babilónia,
sinto-me em casa em qualquer lado.
Mas o sul é o meu lar, o meu mar,
a minha raiz nua de figueira,
lambendo a terra.
Caldas da Rainha, Setembro de 2009
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
boca incontinente
sábado, 19 de setembro de 2009
MESA DE CAFÉ
Um dia um rapaz conheceu uma rapariga. Não se conheciam de parte alguma. Depois começaram a encontrar-se numa mesa de café. E foi como se os seus dois mundos se reunissem a essa mesa. Ela bebia uma chávena de chá, aromático, ele um licor forte, alcoólico. E falavam de histórias de vida, em passados cruzados, de estradas e dos seus acidentes, da descoberta das cidades, das propriedades terapêuticas do ar, de aventuras, da maresia. Ele começou a apreciar-lhe os gestos do corpo, a expressão das mãos sobre a mesa. Mãos moldadas pelo trabalho, fortes e determinadas: como ela. Ele tinha mãos pequenas, dedos finos talhados para a escrita, mas nunca lhe dera a entender essa sua perspectiva do mundo. A única escrita que ela lhe conhecia eram as palavras soltas, aéreas, à volta daquela mesa. Havia ali, ao redor da mesa, à volta das palavras e nos gestos dos corpos um mundo em construção.
Pensava ele.
Cada vez que se sentavam a essa mesa, era como se outros mundos quotidianos se fechassem para sempre.
Naquele balão de noite insuflada, tudo parecia tão nítido como num sonho.
E durante o dia ele transportava-a na cabeça (agradava-lhe a sua companhia) e assim os seus dias passavam sem dar por isso. Os dias começavam-lhe a fazer sentido.
A rapariga, começou a não aparecer ao encontro da mesa redonda, receando que a pouco e pouco ele pudesse gostar verdadeiramente dela.
Ela deixou de aceitar qualquer convite, fechou-se de novo na sua vida quotidiana, de gestos repetidos e seguros, que lhe davam toda a aparência de segurança que ele adivinhava no seu olhar doce.
Ao escrever estas linhas, o rapaz, procurou incessantemente um fim para a história, que os conseguisse sentar de novo à volta daquela mesa mágica, mas não foi possível. Enquanto rematava a última frase, levantou os olhos momentaneamente do papel e estava uma rapariga na mesa do lado.
ANDO EU AQUI
Ando pr’aqui às voltas, mais reviravoltas,
Já pareço um daqueles fazedores de livros, desconstrutores,
melhor dizendo.
E no texto circular, em forma de onda,
perco-me no lábio dela, no teu lábio,
que me anuncia o sexo bom.
Ou então vou vadiar mais um pouco na baixa, com pombos
e excrementos empoleirados nos outdoors.
Nesta altura há-os dependurados das ruas estreitas,
nas ruas largas e rotundas com caras gigantes sem olhos.
Vazaram-nos como urnas despejadas,
mas dos orifícios não fluem lágrimas,
Natural que assim seja. Quem lidera não se emociona.
Isso é para os poetas, gente abjecta que ainda sente,
e sonha e amanhece sem noite dormida.
E fode e come e resplandece de peito nu,
e vibra ingenuamente ao som das palavras.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
SONO
Quando as palavras não beijam o papel da minha pele,
Adormeço. Entro no sono profundo dos pássaros nos ninhos.
Sobe-me à cabeça um novelo irreal.
O Pacheco anda-me na cabeça, voa de encontro
às estantes desarrumadas deste ninho.
Hoje há um voo dentro de mim, igual a todos os bandos
de libertinos, que sobreviverão à minha morte.
A boca vai ruminando a literatura clandestina.
Ingerindo letargia até atingir o climax da noite.
Bebo-te a boca, a língua, o sexo ovulado.
Troco-te por um negócio de cama desalinhada,
A minha sede apetece-te tocá-la.
A seda desenhada na pele de vinho,
Abraças-me e a madrugada entra-me
de rompante num corpo verde de seiva matinal.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
RUA OBLÍQUA
As horas passam, mas estou lá há menos de vinte minutos. Os dardos cruzam-se à minha frente em trajectórias oblíquas, desafiando as bolas de fogo lançadas no hálito das bocas. Um dente de ouro reluz de encontro à lingua da loira. A bola de fogo torna-se incontrolável e o barman afunda-se um pouco mais no seu barco. Senta-se e fuma um cigarro. O alvo anuncia-se vitorioso e eu volto a casa atravessando as ruas estreitas, de luzes amareladas. Talvez vá dormir um pouco: ou cobrir.